OPINIÃO

Economia da Cultura: em defesa do valor cultural

Éder Rodrigues dos Santos

Ernany M. do Nascimento – Filho de Makunaima
Mestre Biriba – Jefferson Dias

Uma ampla gama de possibilidades é proporcionada pela “dimensão simbólica” da cultura. Dentre elas, podemos citar algumas, como: a afirmação de pertencimento, coesão social, segurança, ócio criativo, consciência de classe, estímulo ao turismo cultural, inclusão, saúde mental e até antídotos contra o medo, ansiedade e depressão. Perspectivas peculiares, bem diferentes dos demais segmentos econômicos. Os “valores simbólicos” e “intrínsecos” da cultura são condicionantes do valor econômico – e não o contrário. A produção subjetiva da arte está no campo do “não-mercado”, ou seja, os valores simbólicos e intrínsecos da cultura podem ser adequados à mercadoria, mas esta refletirá uma mínima parcela de seus benefícios no contexto de uma sociedade de consumo urbana e industrial. 

A cultura é um sistema complexo que extrapola o uso dos bancos de dados ou enfoques que priorizam apenas o lucro. A dimensão econômica é importante, pois estão incluídos nela o trabalho, o capital e a geração de empregos. Mas tal dimensão é solidária às perspectivas simbólica e cidadã da cultura, por isso não pode ser central no debate para a construção de políticas públicas alicerçadas na diversidade e na tradição, notadamente, quando se trata da cultura amazônica de fronteira. Em outras palavras, a cultura brasileira e sua potência de nos proporcionar novas perspectivas de mundo, de observar e sentir a cultura de um lugar ou de um grupo social diferente do nosso, não se sustenta apenas pelo viés da economia. Mesmo que a cultura seja atravessada pelo lucro econômico que produz, esta cultura vai muito além.

Os valores de uma sociedade controlada pelo consumo têm, muitas vezes, como fio condutor, a manipulação e o controle provenientes de uma imposição cultural e de bens culturais, notadamente, eurocêntricos ou originária da indústria norte-americana imperialista. Sobre a ideia de cultura dominante, o Dicionário Crítico de Políticas Culturais distingue entre: “1) uma cultura dominante por imposição violenta – exemplo: a imposição às populações indígenas, pelas armas, do português, espanhol, inglês ou francês junto com a doutrina cristã e a civilização europeia – e; 2) uma cultura que resultou dominante por ter-se tornado, por variados motivos, ponto de referência central e fonte inspiradora”. Problemas que vêm sendo enfrentados geograficamente com a produção de obras literárias de intelectuais de variadas matizes culturais, como os afro-ameríndios.

A teoria do valor econômico, dentre outras possibilidades, preceitua a compreensão do valor de uso e valor de troca para bens e serviços. O primeiro, a grosso modo, é determinado pela capacidade de satisfazer as necessidades humanas pelo uso de suas propriedades físicas; o segundo, permite a compreensão de quantificação de bens ou serviços equivalentes, que varia no tempo e espaço. Mesmo que aplicados ou não a períodos pré-monetários, ou seja, antes do surgimento do dinheiro, ambos precisam ser analisados sob um prisma sistêmico da modernidade. No caso das culturas pré-modernas, o que está em jogo na economia da cultura amazônica é a tradição que carrega as práticas e bens culturais ancestrais de muitos povos. Precificar, ou seja, impor um preço aos processos, bens e serviços culturais será sempre um arriscado desafio moderno.

As indústrias criativas e a economia criativa são fenômenos resultantes das demandas modernas, que não são um fim em sim mesmas, mas caminhos para compreensão da potência da cultura e suas possibilidades no campo econômico. O fato de movimentar o equivalente a 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB/2020) e superar, por exemplo, o índice da indústria automobilística e farmacêutica, com 7,4 milhões de empregos formais e informais gerados no país, o equivalente a 7% do total dos trabalhadores da economia brasileira é importante, e são números que devem atrair a atenção dos gestores públicos e privados. É a magia da cultura, que encanta olhares, que revela talentos, que promove a diversidade e que sustenta famílias.

A sustentabilidade é uma forma de conseguirmos defender a economia cultural para o Bem Viver, usufruindo dos bens naturais para diminuir a pobreza e ter qualidade de vida, mas sem destruir ou poluir a natureza. As próximas gerações agradecem. Neste sentido, o valor cultural não é apenas a transformação da natureza como via de produção, mas sim ao mesmo tempo, a possibilidade de preservação da sociedade, com regras de convívio, de cooperação, de distribuição e até de acúmulo da riqueza produzida. Neste sentido, podemos pensar que a sustentabilidade, principalmente enquanto discurso não está imune do conflito de interesses que temas como esses provocam, exatamente por envolver assuntos econômicos, por vezes contrárias e em outras vezes complementares.

De outro modo, as centenas de fazedoras e fazedores de cultura, além de movimentar a base socioeconômica da nossa sociedade, alcançam lugares que o poder público com sua velha política não chega. Em sua maioria, sobrevivem em resistência, com suas artes e ofícios, criando um cenário harmonioso e de beleza nos diversos bairros e municípios da nossa Amazônia, como um coração que pulsa pela vida depois de muito percorrer os percalços das dificuldades de existir.    

A arte e cultura são elementos que formam o cidadão e a cidadã, que podem construir pontes de paz e harmonia entre grupos sociais diversos, que reúne ideologias diversas, sem competição. A cultura e as artes têm papel fundamental na consolidação democrática do País e no enfrentamento de questões urgentes. Na cultura, temos um encontro de saberes, de fazeres. As dinâmicas culturais contemporâneas são fruto da efervescência de práticas alavancadas por grupos diversos, vinculadas às questões de gênero, raça, etnias, classe, território, cosmologias, dentre outras.

O olhar generoso e criativo para o fortalecimento das culturas locais amazônicas e para a formulação de melhores políticas de incentivo à cultura é uma escolha de todos e todas que acreditam em uma sociedade mais justa e mais preparada para os desafios contemporâneos. Trabalho, renda, tradição e ancestralidade caminham juntos nessa riqueza chamada cultura brasileira.

Éder Santos é jornalista, sociólogo, mestre e doutorando em Geografia; membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas da Universidade Federal de Rondônia; da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP); do Comitê Pró-Cultura Roraima. É presidente da Associação Roraimense de Cinema (Arcine).

Ernany M. do Nascimento – Filho de Makunaima, economista indígena, pós-graduando em administração pública e direito público (UNAMA), mestrando em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais/MESPT na Universidade de Brasília/UnB, líder e pesquisador da economia indígena em Roraima.

Jefferson Dias – (Mestre Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito e Pós-graduando em Compliance, Governança Corporativa e ESG. Conselheiro Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado de Roraima – CONSEPIRR, Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima, Membro da Federação Roraimense de Capoeira – FERRCAP, Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba – Educar para transformar.