No artigo intitulado “A indefinição fundiária e um esquema em curso que ameaça famílias de pequenos produtores”, publicado no dia 12 de abril deste ano, foi tratada da questão de um esquema de georreferenciamento, no qual pessoas influentes e de poder aquisitivo passaram não só a ocupar áreas públicas, mas também a se apossar de lotes que já pertencem a pequenos produtores ou pessoas simples, desprovidas de conhecimento e de quaisquer condições de resistir às investidas, por meio do “esquema do geo”.
Seguidas denúncias apontaram que um esquema de georreferenciamento vem sendo colocado em prática em todo o Estado, onde pessoas humildes detém a posse de suas terras, mas não dispõem de conhecimento nem têm condições financeiras para fazer o “geo” de suas áreas a fim de dar entrada na regularização de suas propriedades no órgão fundiário. Em algum momento, essas famílias descobrem que elas não são mais proprietárias de seus lotes e que pessoas influentes já estão como proprietárias legalizadas.
O tempo passou, novas denúncias foram feitas e até a morte de um casal no Cantá apontou a existência de irregularidades fundiárias, cujos desdobramentos do duplo homicídio têm ocorrido na esfera judicial, mas as autoridades até agora não mostraram boa vontade de apurar as denúncias nem de resolver administrativamente os problemas. Pelo contrário, uma recente decisão complicou ainda mais a vida dos pequenos.
Por meio da Portaria 439/2024, publicada no dia 21 de agosto, ou seja, na semana passada, o Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima) decidiu alterar uma portaria do ano passado que dificulta ainda mais a situação dos pequenos proprietários que dão entrada para a regularização de seus lotes. Agora, esses requerentes de até quatro módulos terão que fazer suas próprias vistorias, exigência esta disfarçada de obrigação de apresentar fotografias, imagens aéreas e coordenadas geográficas na hora de dar entrada no processo de titulação.
Conforme a portaria, os pequenos proprietários serão abrigados, agora, a fazer o sensoriamento remoto, algo que está fora de suas capacidades e entendimento. O sensoriamento remoto é uma coleta de dados e informações de uma determinada região na superfície terrestre por meio de sensores acoplados em drones, aviões ou satélites artificiais, que registram imagens da superfície terrestre. É uma situação complicada imposta aos produtores familiares.
O que chama a atenção nesta decisão é que ela pode ser comparada como uma mudança na legislação por portaria, passando a exigir o que a legislação não determina, punindo exatamente aqueles que não têm condições financeiras para pagar empresas ou autônomos para que façam esses serviços. E o detalhe é que o “esquema do geo” passa exatamente por essa atribuição de outras pessoas fazerem um serviço que deveria ser obrigação do órgão fundiário, que por sua vez alega não ter recursos para isso.
Lembrando que, com autorização da Assembleia Legislativa em dezembro de 2023, quando os deputados aprovaram um projeto de lei que autorizou o Governo do Estado a remanejar R$37 milhões dos cofres do Iteraima, provenientes de venda de terras públicas, recurso este que deveria estar sendo usado para regularização fundiária dos pequenos, beneficiando uma grande parcela de produtores familiares. A alegação para o remanejamento é que o governo não tinha recursos para tocar obras licitadas, enquanto faltam recursos para o órgão fundiário ajudar os pequenos proprietários.
Da forma que está sendo feita, com a alegação de que a portaria seria para aperfeiçoar o processo de titulação, suspeita-se que dificultar a regularização das propriedades dos pequenos acaba por beneficiar a concentração de terras nas mãos de poucos que compram essas propriedades a preços irrisórios. Em outra ponta, os que conseguem a regularização fundiária também acabam vendendo suas propriedades para esses mesmos especuladores e latifundiários beneficiados pelo mercado imobiliário e por essa política fundiária.
A mudança da lei por portaria age no vácuo da falta de coragem das autoridades de fazer aplicar o que diz a lei dentro dos processos de regularização fundiária. O pior é que, desde ontem, começaram as movimentações para uma possível mudança na direção do órgão fundiário, o que certamente favorecerá que essa alteração caia no esquecimento e continue valendo em prejuízo aos pequenos proprietários de terras de Roraima.
Além de tudo isso, até aqui não se ouve mais falar das denúncias que apontam o nome de pelo menos três pessoas que estariam fazendo georreferenciamento no Estado dentro desse grande esquema e que foram denunciados à polícia. Enquanto isso, grandes proprietários são os maiores beneficiados, e os pequenos são direcionados às complicações de uma legislação alterada por meio de portaria. Aos grandes, os benefícios do poder. Aos pequenos, os rigores da lei.
*Colunista