Em Boa Vista, Roraima, dois advogados foram presos na semana passada em um episódio que expôs a tensão entre o exercício da advocacia e o uso da força policial.
Um deles foi detido dentro da casa do seu cliente, um tenente da Polícia Militar acusado de maus-tratos a animais, enquanto o acompanhava na condição de seu defensor. O segundo advogado foi preso na porta da delegacia ao filmar o colega advogado, já detido no camburão da PM, sendo levado para o interior da delegacia.
A situação escalou com empurrões entre o advogado e os policiais militares, que começaram na rua e continuaram dentro da delegacia, até os limites do espaço público de atendimento. Os policiais civis presentes permaneceram inertes, escudados por orientações no sentido: “É proibido filmar”.
Este episódio é mais do que um simples desentendimento entre advogados e policiais; ele representa uma afronta ao direito dos advogados de fiscalizar e proteger direitos no exercício de suas funções. A advocacia, essencial à justiça, possui prerrogativas que garantem o acesso a informações e a possibilidade de documentar atos públicos, inclusive por meio de registros audiovisuais. A filmagem, nesse contexto, não é apenas um instrumento de transparência, mas um recurso indispensável para a proteção dos direitos individuais e coletivos.
É importante lembrar que o próprio ato verbal de um policial é um ato administrativo, sujeito ao controle da legalidade e aos princípios constitucionais. Embora certas ações policiais possam ter sua publicidade mitigada por questões de sigilo — como investigações em curso ou operações de natureza especial —, essas exceções são temporárias e claramente delimitadas pela lei. No caso ocorrido em Boa Vista, nada justificava qualquer restrição à filmagem, pois tudo se deu em espaços abertos ao público e à vista de todos, sem qualquer sigilo que demandasse proteção especial.
O ordenamento jurídico brasileiro não proíbe a captura de imagens por advogados no exercício de suas funções em espaços públicos ou de servidores em atividade pública. Servidores públicos, ao exercerem suas funções, não têm o direito à intimidade e privacidade que se aplica à vida pessoal, estando sujeitos ao princípio da publicidade, que exige transparência e fiscalização de seus atos pela sociedade.
Não há necessidade de autorização pessoal para registrar esses atos; se assim fosse, até as câmeras de segurança em vias públicas seriam proibidas.
O Provimento nº 188/2018 do Conselho Federal da OAB regulamenta a chamada “investigação defensiva”, permitindo que advogados realizem diligências voltadas à produção de provas, inclusive por meio de registros audiovisuais (obtenção de dados), em qualquer fase do processo penal. Impedir que o advogado registre ações de agentes públicos é subverter o princípio da publicidade e transformar a função pública em um exercício de opacidade.
Além disso, a Lei Estadual nº 1.509/2021 de Roraima determina que instituições públicas, como delegacias, devem divulgar, por meio de cartazes e murais, claramente os direitos dos advogados, incluindo o livre acesso a esses espaços, conforme garantido pelo Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994). No entanto, cartazes ou orientações que dizem “É proibido filmar” contradizem essas prerrogativas e enfraquecem a função da advocacia. Permitir que o advogado entre, mas restringir sua capacidade de registrar o que presencia, transforma sua atuação em um embate desigual de versões, onde, sem poder registrar o que vê ou ouve, fica limitado na produção de provas, na documentação de abusos e na contestação de condutas irregulares. Desde a promulgação desta lei, sua aplicação nunca foi devidamente cobrada, perpetuando restrições arbitrárias. Este é o momento de exigir sua plena implementação, assegurando que os direitos dos advogados sejam respeitados e que a fiscalização das ações públicas seja uma realidade concreta.
O registro audiovisual, portanto, não é um privilégio, mas um direito indispensável ao exercício da advocacia. Em um Estado Democrático de Direito, é essencial que a luz da verdade seja lançada sobre as ações das autoridades, e o advogado deve ter a liberdade de documentar, contestar e proteger, para que a justiça prevaleça sobre o autoritarismo e a censura.
MICHEL FERRONATO
OAB/RR 2.415