Sebastião Pereira do Nascimento*
O lavrado de Roraima, cuja maior parte da vegetação é aberta, tem sofrido severas perdas em sua flora e fauna, especialmente a partir desta última década. Ou seja, há pouco mais de dez anos, os roraimenses viram a monocultura crescente e desacautelada irradiar-se pelo lavrado, destruindo tudo em sua volta. Estimulada pelo setor público, essa monocultura em larga escala vem a cada ano ocupando mais áreas naturais, produzindo diversos malefícios socioambientais, apesar dos constantes alertas feitos por estudiosos, entidades ambientais locais, além dos povos que tradicionalmente habitam no lavrado, por exemplo, os povos indígenas — esses, constantemente ameaçados pela expansão do agronegócio.
Diante dessa expansão acelerada, ainda que esses alertas tenham algum impacto local, nada é suficiente para assegurar efetivas ações (de políticas ambientais) que possam garantir a integridade da biodiversidade do lavrado. O uso incorreto e arrogante desse ecossistema regional tem ameaçado fortemente inúmeras espécies nativas de plantas e de animais, quer pela supressão direta da vegetação natural, substituída por monocultura, quer pelo uso exagerado de agrotóxicos ou ainda pelo uso inadequado do solo.
No caso da vegetação, é um dos principais componentes do lavrado, responsável direto pela manutenção do sistema hídrico regional. Logo, se faltar essa cobertura vegetal, esse recurso hídrico ficará seriamente comprometido, como já constatado em algumas áreas, onde a monocultura tem sido estabelecida intensivamente. Portanto, os recursos aquáticos do lavrado — inclusive a água de qualidade para consumo direto das populações humanas locais e suas atividades essenciais — dependem de um cuidado muito maior que precisamos ter e a empreender como forma de não permitir o que vem acontecendo pelo Brasil afora, embora já se evidenciam essas ocorrências locais.
Por outro lado, ainda que alguns elementos do lavrado (uma vez ameaçados) mostrem algum grau de resiliência — que é a capacidade de retornar ao estado original, após ter sido submetido à perturbação —, urge a necessidade de uma intervenção dos setores públicos competentes, no sentido de mitigar uma possível tragédia maior, pois sabemos que por si só a resiliência desses elementos do lavrado não é suficiente para trazer de volta as mesmas condições naturais.
O lavrado, como um ecossistema não florestal, além de não ser valorizado, é geralmente mal compreendido tanto na sua forma quanto na sua funcionalidade e, até hoje, há pessoas que acreditam que os campos naturais do lavrado são resultados da ação humana ao longo do tempo, onde à primeira vista dá a impressão de uma área “desmatada” — aqui está uma das razões para ser chamado popularmente de “lavrado”.
Então, aproveitando essa visão imprecisa, os especuladores de terra da região costumam dizer que essas áreas abertas são “pobres” e sem nenhuma importância ecológica. E, pelo fato de não ser um ambiente florestal (como as matas do sul do estado), alegam que não precisam “desmatar” para o uso da agricultura, o que é uma grande ignorância, pois não consideram que só o fato de suprimir a vegetação rasteira já implica num desmatamento, causando um grande impacto, visto que a região apresenta uma heterogeneidade ambiental interligada por uma rede de interações ecológicas capaz de influenciar na dinâmica da flora, da fauna, do clima, além de outros serviços ecossistêmicos prestados à Amazônia.
No mesmo contexto, essa ideia de “terra arrasada” vem também em função de que os principais esforços conservacionistas sempre se concentraram em áreas florestais, as quais despertam mais atenção de conservacionistas e da sociedade do que as áreas de campos (não florestais). Assim, os primeiros movimentos em busca da conservação começaram pelas florestas. Uma das explicações plausíveis para este viés está no fato de que, em todo o mundo, terras florestais foram as primeiras a serem convertidas para a agricultura, enquanto as áreas abertas eram utilizadas para pastoreio, uma vez que os solos com baixa fertilidade e mais seco colocavam essas terras na condição impróprias para o cultivo agrícola. Isso até as barreiras tecnológicas serem vencidas, convertendo os campos em agricultura, ainda que continuasse a devastar as florestas como acontece na atualidade.
No caso do lavrado, é uma das paisagens de áreas abertas no Brasil que tem sido severamente negligenciada pelas mãos de mercenários de terras, com apoio de políticos inescrupulosos que teimam em desconsiderar a importância ecológica desse ecossistema para a nossa região. De um lado, embora possa haver uma ausência de informações a respeito dos impactos da monocultura de grande porte sobre o ecossistema de lavrado, de outro lado é satisfatória a existência de estudos sobre vários aspectos ambientais do lavrado, sobretudo em relação à flora e à fauna (estudos da diversidade vegetal e animal, levantamentos fitossociológicos e faunísticos, identificação de táxons (plantas e animais), distribuição regional, habitats, ecologia, etc (considerando diversos grupos de fauna), além de estudos geomorfológicos e geoecológicos no contexto da formação Boa Vista. Também podemos acrescentar o Zoneamento Ecológico e Econômico (ZEE) do estado e alguns estudos da Embrapa. Ou seja, há um arsenal de informações técnico-científicas que podem subsidiar os plantadores de grãos, as agências de fomentos e os órgãos de políticas agrícolas do estado e dos municípios para o uso adequado dos recursos naturais da região.
Quando se trata da estrutura geral do lavrado. Primeiro, temos de entender que todo o estado de Roraima está situado dentro do Domínio Morfoclimático da Amazônia, onde a região sul do estado se encaixa perfeitamente dentro do que se convencionou chamar de floresta amazônica. Da região central, no sentido nordeste de Roraima, a região apresenta uma paisagem de áreas abertas, que se estende também pelo território da Guiana. Sendo cerca de 37.000 km² situados em terras roraimenses. Nessas áreas onde está o lavrado, o relevo é suave, com cotas entre 80-200 metros de altitude, com presença de colinas (tesos) originadas pela dissecação da drenagem em torno dos sistemas lacustres interconectados por buritizais, e nas regiões serranas mais ao norte, cerca de 900 – 1200 metros de altitude. No extremo norte, Roraima apresenta unidades geomorfológicas mais definidas pertencentes ao Escudo da Guiana. Uma região de rochas antigas, cerca de 1,9 a 2 bilhões de anos, constituída por extensas serras e relevos tabulares (tepuis) — dispostos sobre terrenos sedimentares e cristalinos — de 1500-2700 metros de altura.
A hidrografia do lavrado é predominantemente autóctone, formada por um sistema fluvial acentuadamente ramificado, composto por igarapés perenes e intermitentes, nascentes de cursos d`água, grandes rios (Branco, Tacutu, Uraricoera, entre outros) e lagos, interconectados através do transbordamento das águas no período das chuvas, quando também ocorrem nas porções planas do lavrado, o alagamento de áreas contínuas, localmente chamadas de “baixas”. São nessas áreas planas que ocorrem as depressões do terreno que dão origem aos lagos naturais, os quais coalescem com os sinuosos igarapés e, que por conseguinte, deságuam nas calhas principais dos rios da região. É nesse sistema fluvial que também se concentra uma composição de organismos aquáticos de suma relevância ecológica para essas áreas abertas, além da importância sociocultural, sobretudo com relação à abundância de peixes, uma das principais bases alimentares do povo do lavrado.
Diante dessa heterogeneidade ambiental, o lavrado abriga uma composição florística diversa, com pelo menos 89 famílias, 281 gêneros e mais de 576 espécies vegetais, distribuídas entre plantas herbáceas, arbustivas e arbóreas (ver e.g. Miranda, I.S. & Absy, M.L. 1997. In: Homem, Ambiente e Ecologia no Estado de Roraima, INPA, p.445-462). Em relação à fauna, o estado de Roraima apresenta uma riqueza da ordem de mais de 1.300 espécies de animais vertebrados (peixes, anfíbios, lagartos, serpentes, quelônios, jacarés, aves e mamíferos) distribuídos nos vários ecossistemas roraimenses, algumas espécies podendo ser endêmicas. Não o bastante, ocorrem ainda nesses ecossistemas regionais vários grupos de invertebrados (anelídeos, moluscos e artrópodes – insetos, aracnídeos, miriópodes e crustáceos) representados por uma infinidade de táxons.
No tocante aos vertebrados do lavrado, a partir de estudos e inventários realizados para o estado de Roraima, podemos citar o quantitativo de espécies que ocorrem nos diversos ambientes deste icônico campo natural: peixes – mais de 300 espécies registradas para Roraima, pelo menos a metade (ou mais) ocorrem no lavrado (ver e.g. Bríglia-Ferreira, S.R. & et al., 2007. Rio Branco: peixes, ecologia e conservação em Roraima, INPA, 201p); anfíbios – 54 espécies para o estado, pelo menos 23 espécies ocorrem no lavrado; quelônios – 13 espécies para o estado e pelo menos 02 (ou + 02 sp eventuais) para o lavrado; lagartos – 38 espécies para o estado e 14 registradas para o lavrado; serpentes – 76 espécies para Roraima e 34 assinaladas para o lavrado; jacarés – 04 espécies para o estado, pelo menos 02 habitam no lavrado; Aves – 731 espécies para o estado e pelos menos 478 assinaladas para o lavrado (incluindo 106 sp de hábitos aquáticos); mamíferos – 63 espécies para o estado, pelo menos 26 ocorrem para o lavrado (ver e.g. Carvalho, C.M. & Nascimento, S.P. 2021. Vertebrados Terrestres de Roraima: diversidade regional, contexto ambiental, habitats e paisagens de Roraima. In: Biologia Geral e Experimental, 156p).
Todos esses grupos faunísticos coexistem sob um mesmo domínio, sendo cada espécie ocupando o seu nicho e interagindo de maneira específica com o ambiente. No que se refere aos impactos da monocultura sobre esses grupos de animais, é fato que na atualidade a fauna do lavrado, bem como o próprio ecossistema como um todo, passa por uma crescente ameaça, e caso não tenha uma conduta reparadora, a expectativa futura é o pior cenário possível. Isso porque, a retirada de cada pé de caimbé, de mirixi, uma moita, um cupinzeiro, uma ilhota de mata, uma mata ciliar, um buritizal, o assoreamento de corpos d’água, o uso descomunal de agrotóxicos e as práticas de manejo mal conduzidas tornam-se ações antrópicas, separadamente ou em conjunto, potencialmente destrutivas. Eliminando desde a microfauna do lavrado, ninhos (ovos ou filhotes) de anfíbios, répteis e aves, além de outras vidas silvestres a partir da destruição de diversos microhábitats e de recursos tróficos (alimentos) de muitas espécies animais.
Assim é o agronegócio, que, por necessitar de grande extensão de terra para produzir, a cada ano amplia o seu raio de destruição, afetando o equilíbrio da cadeia ecológica e a perda de muitos componentes da biodiversidade, ou seja, a monocultura de grande escala vem silenciosamente destruindo um dos mais importantes patrimônios naturais do povo roraimense: o lavrado de Roraima. Associado a isso, soma-se também a perda do rico patrimônio genético (vegetal e animal) e, se duvidar, pode estar levando à extinção espécies que a ciência nem mesmo chegou a conhecer.
É preciso lembrar ainda que, para a produção dessa monocultura avassaladora, é inevitável que toda a cobertura vegetal seja suprimida da terra, o que influencia na questão climática regional e desencadeia um doloroso processo de desertificação e a exaustão do solo, necessitando cada vez mais de produtos químicos (fertilizantes e agrotóxicos) para suprir a esterilidade do solo e o controle de pragas e de plantas invasoras. Em conclusão, todas essas ações cruzam a linha do bom senso e vão além da estupidez — quando o estúpido passa a ser constitutivamente destrutivo — onde, no geral, nem mesmo a legislação ambiental ou as regras postas pelo ZEE são devidamente levadas em conta.
* Consultor ambiental – autor de vários trabalhos científicos; coautor do livro “Vertebrados Terrestres de Roraima”; associado à SociedadeBrasileira de Zoologia (SBZ), registro nº 2260; membro do corpo editorial da revista Biologia Geral e Experimental (www.biologiageraleexperimental.bio.br).