JESSÉ SOUZA

Protesto atual e a antiga prática de 27 anos atrás para negar e culpar a vítima

Familiares de jovem que morreu após atendimento na maternidade organizaram protesto na tarde desta segunda-feira (Foto: Divulgação)

Desde que o escândalo das mortes de bebês na maternidade pública estadual estourou no final do ano de 1997, quando um bebê recém-nascido morria diariamente de infecção hospitalar, a prática segue a mesma, como se fosse um mantra governamental: negar denúncias divulgadas pela imprensa e jogar a culpa pelas tragédias evitáveis nas próprias vítimas.

Naquela época, 27 anos atrás, a macabra sequência de morte no berçário do Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth foi revelada pela Folha de Boa Vista, cujo furo jornalístico chamou a atenção da imprensa nacional, que desembarcou em peso em Roraima para acompanhar o desenrolar dos fatos.

No entanto, a ordem do governo da época era não só desmentir toda e qualquer notícia como também descredibilizar quem denunciasse, alegando uma perseguição partidária ou política (ainda que não fosse período eleitoral), geralmente jogando a culpa em mães que não teriam realizado o pré-natal ou não terem seguido as recomendações médicas.

Como se tratavam de mortes diárias, sem que a imprensa tivesse tempo e condições de checar com a família das vítimas se realmente o problema estava na falta de pré-natal, as versões mentirosas ganhavam corpo, deixando a opinião pública em dúvida de quem realmente era a culpa. Como não havia internet e boa parte da imprensa era cooptada, a versão mentirosa muitas vezes prevalecia.

Hoje, não. As redes sociais estão aí para dar voz a quem não tem acesso à imprensa tradicional. E está sendo assim com o caso da morte da jovem Carmem Elisa e da bebê dela, Alice Eloah, cuja versão do governo foi jogar a culpa na mãe sob o argumento de que ela não teria feito o pré-natal corretamente.

Mal sabiam que a jovem vítima se tratava da filha da artista indígena Carmézia Emiliano, considerada uma expoente da Arte Naïf, reconhecida mais fora de Roraima do que em sua terra natal,  justamente por ser indígena. Nem ponderaram a possibilidade de que a família poderia desmentir com documentos a falácia nas redes sociais, conforme foi feito.

Ao contrário, tentaram de todas as formas fazer acreditar que a versão da família da vítima seria uma “fake news”, seguindo o mesmo modo de agir de tempos atrás, como se o povo ainda estivesse em suas cavernas da insignificância e submetido ao medo de se impor contra uma grande injustiça.

O protesto da família de Carmézia e do marido da jovem vítima, realizado na tarde desta segunda-feira, 23, em frente do recém-reformado prédio da maternidade, foi revestido desse poder de mostrar à opinião pública como os agentes governamentais agem sorrateiramente para ocultar a verdade dos fatos e para tentar culpabilizar a vítima, duas vezes penalizada – pelo descaso e pela maligna trama acusatória.

Na época das mortes no berçário, em 1997, muitas famílias simplesmente desistiram de buscar seus direitos porque não sabiam de seus direitos ou porque sentiram o peso de serem acusadas por meio de tramas publicadas na imprensa, em vez de acolhidas pelo poder público, ficando com receio de sofrerem sérias represálias.

Esse é a questão principal neste triste episódio. É necessário apurar todas as responsabilidades não apenas pelo que levou à morte da jovem mãe e de sua bebê, mas também dos que tentam imputar à vítima e sua família a culpa pela morte. Não se pode mais aceitar que antigas práticas sejam usadas como tática de livrar os verdadeiros responsáveis pelos descasos e desmandos.  

*Colunista

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