Ao andar pelas proximidades da Rodoviária Internacional José Amador de Oliveira, a fala nas ruas é predominante o espanhol. Entre venezuelanos e brasileiros, o comércio local constrói uma nova rotina com a presença dos imigrantes que utilizam calçadas e gramados para dormir à noite. Os impactos desse novo cenário foram sentidos há alguns meses e a convivência com as pessoas em situação de rua ainda divide opiniões entre os comerciantes, mas a maioria diz que comércio está sendo prejudicado.
Há dez anos, Antônio Neto tem um restaurante ao lado da Rodoviária alugado pela Prefeitura de Boa Vista. Durante todo o dia, ele e a esposa observam a movimentação dos imigrantes e relataram que desde que a crise migratória começou, tiveram uma perda de 90% nas vendas. “Chegamos aqui às 8h e ficamos até as 23h. Eles começam a se aglomerar já no final da tarde. Antes eu tinha seis funcionários e hoje só tenho dois, porque não tenho mais como custear”, lamentou.
A esposa do comerciante, Dilane Aleixo, relatou que nos outros restaurantes que não abrem durante o dia, os venezuelanos ficam no espaço para se protegerem do sol, mas costumam ter divergências para saírem do local quando são solicitados. “De manhã a gente precisa pedir para eles saírem, mas temos receio. Não temos como trabalhar porque quando chegam clientes, eles vão pra cima pedir alguma coisa. Aí a pessoa vai embora”, contou.
Enquanto isso, o casal espera que a situação melhore para que voltem a ter lucro porque garantem não ter como conseguirem outro tipo de emprego ou abrirem outro ponto comercial. Por ser muita gente em situação de vulnerabilidade, o comerciante tenta ajudar como pode. “Se a gente dá comida para dois ou três, no outro dia tem vinte aqui pedindo”, enfatizou.
Do outro lado da rua, lojas e pequenos mercados fecham nas primeiras horas da noite, mas relataram que clientes já confessaram estarem inseguros. De acordo com uma funcionária que não quis se identificar, os problemas se concentram na quantidade de pedintes e também em pequenos furtos que ocorrem dentro do comércio.
“Sempre tentamos ajudar, independente de atrapalhar as vendas ou não, é humano. Tem situações de pessoas com fome e doentes que temos que ajudar”, contou. A balconista disse que os donos do comércio tiveram que providenciar uma grade para evitar que os imigrantes dormissem em frente à loja e aumentar a questão de segurança.
ACORDO – Na frente de uma loja de peças de automóveis, alguns pertences já estão na porta do local para garantir o espaço embaixo de uma cobertura de metal e fugir da chuva. Sem poder evitar que os imigrantes se aglomerassem, o dono tomou a decisão de entrar em acordo com os venezuelanos e pedir para que eles saiam pela manhã, no horário que a loja abre.
“Ele falou que podem dormir na frente, mas que saíssem às 7h. Quando chegamos, eles já saíram e já limparam o local. Às vezes, quando começa a chover, eles vêm e ficam na frente, aí algumas pessoas deixam de entrar e passam direto porque fica muita gente”, explicou o vendedor Vanderson Lima. Os funcionários prestam ajuda com água e relatam que durante todo o dia há pessoas pedindo esmolas dos clientes.
SUJEIRA – Para outros, o principal problema é a sujeira deixada em frente às lojas. Uma vendedora de loja de artigos para pescaria, que prefere não se identificar, contou que o cheiro de urina no local é forte. Assim como em outro ponto comercial, a lojista não precisa solicitar que os imigrantes deixem a calçada no amanhecer, já que eles saem por conta própria.
“Só teve uma vez que precisamos pedir para saírem. O que incomoda a gente só é a sujeira porque só ficamos abertos durante o dia e quando saímos, deixamos tudo limpo. No outro dia tá tudo sujo de novo”, lamentou.
Governo e Prefeitura não fazem ações com imigrantes
A equipe de reportagem da Folha procurou o Governo do Estado para saber se ainda realiza alguma ação com os imigrantes, dentro e fora dos abrigos, mas foi informada que toda responsabilidade com os imigrantes passou a ser exclusiva do Exército Brasileiro.
A reportagem questionou também a Prefeitura de Boa Vista sobre o andamento das obras na praça Simón Bolívar e se havia alguma ação para atender as pessoas que estão em situação de rua, visando evitar que voltassem para a praça, mas não recebeu retorno até o fechamento desta edição.
Imigrantes fazem pequeno comércio em frente à Rodoviária
Telefone é o meio de comunicação com a família no país vizinho (Foto: Ana Paula Lima/Folha BV)
Como um dos meios para conseguir dinheiro, os imigrantes implantaram uma espécie de comércio a céu aberto. Cafés, bolos e outros artigos são vendidos em frente à Rodoviária Internacional. Mary Christopher disse que a pequena barraca, que é apenas uma cadeira e uma mesa, consegue pagar o aluguel; dessa forma, não precisa ficar nos abrigos.
Bem ao lado, uma maneira de conseguir mandar notícias e saber como está a família, além de informar que está mandando algum tipo de dinheiro, é por meio do celular. As ligações para a Venezuela são apenas R$ 0,50 por minuto e concentram uma boa parte de pessoas ao mesmo tempo falando com familiares que decidiram não atravessar a fronteira.
Em meio a esse pequeno comércio, os imigrantes se sentem em casa e até saem dos abrigos para manter o contato com colegas. É o caso de Mariangel Nunez, que chegou há três meses em Roraima e está abrigada, mas resolve passear no local para reencontrar com amigos. (A.P.L)