Indígenas Warao sofrem com desnutrição infantil e falta de acesso a direitos em Boa Vista

O grupo relata viver sem água tratada, com apenas uma ou duas refeições por dia e sem estrutura de moradia apropriada

A ocupação está localizada no ginásio Pintolândia, onde funcionava um abrigo para imigrantes (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)
A ocupação está localizada no ginásio Pintolândia, onde funcionava um abrigo para imigrantes (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

Um grupo de 275 indígenas Warao estão abrigados em uma ocupação, no bairro Doutor Silvio Botelho, há cerca de oito anos. Desse total, 90 são crianças venezuelanas e brasileiras, que sofrem com desnutrição por falta de alimentação adequada. Segundo as lideranças da comunidade, 60% delas também não conseguem frequentar a escola por falta de vagas em instituições de Boa Vista próximas de onde moram.

A ocupação está localizada no ginásio poliesportivo do Pintolândia, onde funcionava um abrigo exclusivo para migrantes indígenas. Em 2022, o abrigo foi transferido para outro lugar, mas o grupo preferiu ficar e fundou a “Comunidade Yakera Ine”, que em português significa “estou bem”, onde vivem quatro famílias. Um dos moradores do alojamento, de 40 anos, que não quis se identificar, disse à FolhaBV que eles querem independência para poder praticar a liberdade cultural do povo.

“Chegamos em Boa Vista em 2016. Um ano depois conseguimos vir para cá, que era um abrigo. Em 2022, o abrigo foi para outro lugar e nós continuamos aqui. A gente prefere viver assim a morar em outro abrigo, onde não podemos praticar nossa cultura, éramos violentados e humilhados. Temos pessoas que trabalham com carteira assinada ou fazendo diárias, mas a maior parte de nós vivemos de artesanato e reciclagem de materiais. Somos pessoas de paz”, afirmou.

Entretanto, a realidade da comunidade mostra a situação de vulnerabilidade em que estão inseridos, sem água tratada, com apenas uma ou duas refeições por dia e sem estrutura de moradia apropriada, com proliferação de fezes de aves, morcegos e ratos. Segundo o morador, duas crianças do alojamento já morreram por desnutrição e uma encontra-se internada no hospital. Além disso, relata que o grupo sofre dificuldades para acessar serviços públicos de saúde e educação devido ao idioma e à xenofobia durante os atendimentos.

“A gente tem que ligar para matricular as crianças, mas os atendentes dizem que não entendem a nossa língua e desligam. As crianças que vão à escola não conseguem estudar e falar com as outras pessoas, porque ninguém entende a nossa língua. Precisa de profissionais, como intérpretes, que ajudem a criança a compreender o que está acontecendo. Também sofremos com a discriminação. Já precisamos chamar o Samu e desligaram na nossa cara quando dissemos que moramos em uma ocupação”, relatou.


O Morador que conversou com a reportagem (Foto: Nilzete Franco/FolhaBV)

A reportagem questionou a Operação Acolhida a respeito dos relatos do indígenas sobre supostas agressões que teriam sido cometidas por agentes da operação. A instituição respondeu que não tem conhecimento da denúncia.

“Reafirmamos nosso compromisso com a transparência e a colaboração, e estamos à disposição para esclarecer qualquer dúvida ou informação adicional. Nosso objetivo permanece o mesmo: promover a proteção, a dignidade e a integração de todos os migrantes e refugiados que buscam refúgio no Brasil”, afirmou.

Cobrança aos órgãos públicos

Diante desse cenário, o Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente de Roraima (FDCA/RR) enviou um ofício aos órgãos federais, estaduais e municipais para pedir providências imediatas referente à situação de vulnerabilidade do grupo Warao, como uma moradia adequada, em que os indígenas tenham autonomia, vagas nas escolas para as crianças e ações de saúde com cuidados médicos emergenciais, como combate à desnutrição e realização de exames.

O Fórum ainda enviou outro documento, em que solicita a criação imediata do 4° Conselho Tutelar em Boa Vista, voltado para atender a população rural do município, com atenção especial para as comunidades indígenas.

Os documentos foram enviados a 12 órgãos. Entre eles, a FolhaBV procurou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Prefeitura Municipal de Boa Vista, o Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) e o Federal (MPF) e a Defensoria Pública do Estado de Roraima (DPE/RR).

Em resposta, o MPF informou que recebeu os documentos e analisa o caso. Já o MPRR se manifestou por meio da seguinte nota:

O Ministério Público do Estado de Roraima informa que a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude recebeu a demanda do Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente de Roraima, na tarde desta terça-feira, 03 de dezembro. A Promotoria de Justiça expedirá ofício para o FDCA/RR,  requisitando informações específicas sobre as crianças que estão em situação de vulnerabilidade, como a lista de nomes e informações essenciais, a fim de que medidas sejam adotadas.

O MPRR também enviará ofício para a Operação Acolhida, que é responsável pelo fornecimento de alimentação no local, para verificar a questão da subnutrição das crianças abrigadas.

Sobre a instalação de um novo Conselho Tutelar na capital, a Promotoria de Justiça instaurou um procedimento para avaliar a necessidade de mais unidade. Conforme os dados coletados pelo MPRR, nos últimos três anos, os 15 conselheiros tutelares realizaram menos de dois atendimentos por dia. De acordo com análise da Promotoria, o número não justifica a implantação de um quarto Conselho Tutelar, tendo em vista que a administração pública deve agir em conformidade com as evidências dos dados coletados para implementação de políticas públicas e obedecer os critérios de interesse da sociedade, eficiência, conveniência e oportunidade.

A Prefeitura de Boa Vista informou que o município desenvolve políticas públicas sem distinção de nacionalidade, raça ou etnia, promovendo atendimentos em diversos segmentos, especialmente na saúde, educação e social, que são primordiais para a promoção da cidadania. Também reforçou que acessar os serviços municipais é um direito de todos.

“A cada ano, a rede municipal de ensino abre período de matrículas para crianças em idade escolar, que podem ser solicitadas por qualquer pessoa, seja brasileira, estrangeira, indígena. As 37 Unidades Básicas de Saúde estão disponíveis para atender a população em geral, das 7h às 19h, algumas com atendimento em horário estendido até meia-noite, como as UBSs Dr. Jan Roman, Aygara Motta Pereira e a UBS Liberdade.

O Hospital da Criança Santo Antônio é referência no atendimento de alta complexidade, sendo a única unidade em um raio de 800km, recebendo pacientes da capital, área rural e comunidades indígenas, demais municípios do Estado e crianças estrangeiras. Lembrando que a unidade dispõe de uma ala exclusiva para indígenas, brasileiros e imigrantes, com atendimento humanizado desde a alimentação até a forma cultural com que habitualmente vivem.

A Secretaria Municipal de Gestão Social dispõe de equipes que fazem busca ativa para identificar famílias em situação de vulnerabilidade para promover a inserção em programas sociais, educacionais e profissionalizantes”, disse em nota.

A Defensoria de Roraima, por meio do Grupo Especial de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (GPDH), manifestou apoio à criação de mais um Conselho Tutelar com atenção às questões indígenas e das populações que vivem no campo.

Em relação à situação envolvendo os indígenas Warao, a DPE-RR informou que não recebeu, até o momento, comunicação oficial sobre o tema, mas destaca que acompanha essa realidade há mais de oito anos, e reconhece que as condições enfrentadas por essa comunidade estão longe do ideal, sendo resultado da ausência de alternativas mais adequadas para os indígenas que optaram por permanecer na área.

“A Defensoria reafirma seu compromisso com a defesa dos direitos humanos e das populações em situação de vulnerabilidade, incluindo as crianças Warao. Diante das denúncias mencionadas, o Grupo Especial de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos agendará uma visita técnica ao local para apurar os fatos relatados e subsidiar as ações necessárias”, informou.

A Funai ainda não se manifestou sobre o assunto. O espaço ainda segue aberto.

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