OPINIÃO

O policiamento de vitrine e a ‘venezuelização” do crime organizado em Boa Vista

Francisco Xavier Medeiros de Castro*

Até pouco tempo, diversas autoridades não reconheciam que Roraima estivesse contemplada como rota do fluxo de drogas comandado por cartéis criminosos transnacionais. O discurso institucional minimizava as apreensões policiais e subestimava as investigações que já apontavam a existência de uma extensa rede criminal formada por criminosos da região sudeste e colaboradores locais. Somente depois da crise do sistema prisional, ocorrida no início do ano de 2017 em todo o território nacional, é que não se pôde mais fingir que não se via as bandeiras do crime organizado fincadas em solo roraimense.

Desde então, o sistema de segurança pública estadual parece não ter encontrado uma solução duradoura para conter a expansão da criminalidade organizada. Avolumam-se soluções midiáticas, operações pirotécnicas, discursos efusivos de autoridades com promessas milagrosas, enquanto a quantidade de “biqueiras” aumenta nos bairros, as drogas invadem escolas e lares, e os homicídios provenientes do acertos de contas do tráfico ganham as manchetes da mídia local e nacional.

Contudo, de forma cíclica, foram registradas respostas efetivas para o correto enfrentamento ao crime organizado. São cíclicas porque, em razão da quebra de continuidade motivadas por questões políticas, não permitiam que a política pública atingisse seu estágio de maturidade esperado. E tradicionalmente, no campo da segurança pública, sempre se olhou com bastante desdém para a implementação de políticas públicas, pois isso exige uma capacidade adequada de governança e o mínimo de disposição para coordenar e integrar atores públicos e privados na busca de soluções conjuntas para redução do crime e para a aproximação da polícia e com a comunidade.

Em 2022, foi implantado o programa Polícia na Rua. Com mais de 100 (cem) novas viaturas, somadas ao ingresso de quase mil novos policiais militares, o policiamento ostensivo da capital e dos municípios conseguiu momentaneamente brecar as taxas de homicídios, roubos, furtos e outros delitos. O bandido passou a ter mais dificuldade para agir. O tráfico de drogas se viu limitado em seus territórios. Diuturnamente, abordagens policiais rendiam sempre boas apreensões de drogas e armas que culminaram com a prisão de muitos infratores. A sociedade respirou aliviada. E a bandidagem se mostrou preocupada com a polícia que não dava trégua.

Além da preocupação com a quantidade de viaturas, um novo produto do programa Polícia na Rua foi implantado: o Núcleo de Polícia de Proximidade (NPP), cuja finalidade era coibir o crime e otimizar o policiamento comunitário em uma das localidades que reunia os maiores índices criminais da capital: o residencial Vila Jardim, no bairro Cidade Satélite. Com uma proposta que reunia policiamento ostensivo, policiamento comunitário e soluções integradas com órgãos parceiros, como SETRABES, CODESAIMA, Roraima Energia, CAER e comunidade local, o NPP em seus poucos meses de atuação zerou os homicídios que ocorriam no Vila Jardim, expulsou as lideranças do crime que ali residiam e devolveu a sensação de segurança aos moradores do bairro. A liberdade funcional conferida ao comandante do NPP permitia reuniões diárias entre a PM e representantes daqueles órgãos parceiros, formatando uma rede de política pública que viabilizava soluções sociais que, consequentemente, impactavam na preservação da ordem local. A hierarquia e a disciplina, no âmbito interno da polícia militar, jamais impediram a constância dessa comunicação interorganizacional, pois sempre o comando-geral e o comando de policiamento da capital estavam atualizados sobre o andamento daquela política pública, e em condições de fornecer as condições necessárias, em nível estratégico, para a continuidade das ações.

Não obstante aos bons resultados apresentados pelo NPP, sua capacidade de articulação com a sociedade civil foi interrompida no começo de 2023, quando passou a se subordinar ao 1º Batalhão da PM, que por sua vez se subordina ao Comando de Policiamento da Capital, que é subordinado ao Subcomando-Geral, que responde ao Comando-Geral, sepultando através da burocracia o fluxo de comunicação tão importante para a continuidade de uma vigorosa política pública de segurança como aquela.

Engana-se quem acredita que o programa Polícia na Rua foi concebido para se resumir às viaturas paradas em pontos de visibilidade local, geralmente nos cruzamentos mais movimentados da capital. É o chamado “policiamento de vitrine”, colocado em prática nos últimos dois anos, para que a mensagem política seja a de que a cidade tem polícia! É fato, tem polícia, sim. E muita! E com excelentes profissionais. Mas por que toda esse aparato policial não tem se traduzido em redução de mortes violentas e outros crimes graves? Por que a sensação de segurança do cidadão boa-vistense continua tão baixa?

Com o passar do tempo, a permanência das viaturas estacionadas nos cruzamentos, com policiais imobilizados e frustrados por não terem autorização para realizar as abordagens de rotina (basta confirmar isso com a tropa!), além de não mais surtir o efeito desejado para a manutenção do sentimento de segurança da população, fez com que os criminosos percebessem que aquelas viaturas paradas não tinham mais a mobilidade de outrora.

O atendimento das ocorrências demandadas pelo 190 passou a ser de responsabilidade exclusiva das equipes de policiais que concorrem à escala de 12 horas e que, em razão da alta demanda reprimida, não têm condições de atender a maior parte das solicitações, muito menos realizar as abordagens de rotina e consultas de antecedentes criminais de indivíduos encontrados em atitudes suspeitas. Não é necessário ser um especialista em segurança para entender que a finalidade do policiamento ostensivo é levar segurança à população e que isso se faz conferindo autonomia supervisionada aos policiais.

Diante dessa lacuna, organizações criminosas venezuelanas viram a oportunidade para formar verdadeiros enclaves em bairros como 13 de setembro, São Vicente e Caimbé. Com mais liberdade para atuarem, e fortalecidas em seus territórios próprios, o poder dessas facções não parou de crescer, transbordando no que vemos hoje em termos de violência e selvageria desenfreada.

Seria leviano, contudo, atribuir o fortalecimento das organizações criminosas na capital Boa Vista apenas à ineficiência do policiamento ostensivo. As razões para o aumento da criminalidade organizada, como em qualquer local, transcendem as causas unicamente policiais, encontrando justificação nas condicionantes econômicas, sociais e políticas.

Mas não podemos ignorar o fato do Estado de Roraima possuir uma das maiores proporções de policiais militares por habitantes do país (com 2.485 policiais militares a proporção é de 1 PM para 288 habitantes!) e permitir que organizações criminosas nacionais e internacionais dominem o cenário local, impondo medo e terror à população.

Para que as soluções esperadas não se circunscrevam somente às estratégias policiais,  o poder público não pode deixar de considerar as estratégias comprovadamente exitosas outrora, a exemplo do que foi desenvolvido pelo NPP no residencial Vila Jardim, em 2022. Se uma organização criminosa concentra suas ações em bairros específicos, tanto melhor para as instituições do estado que, de forma coordenada, poderão concentrar seus efetivos, esforços e recursos para a preservação da ordem pública naqueles espaços.

Como o boavistense pode declarar que usufrui de uma boa sensação de segurança, se há um corpo esquartejado no final da sua rua, ou se a qualquer momento pode ser vítima de um roubo ou de uma bala perdida vinda de um tiroteio entre faccionados? E tudo isso sob as luzes das imponentes viaturas cravadas em suas vitrines.

É importante salientar que a responsabilidade por esse cenário não é do policial militar que se encontra imobilizado dentro dessas viaturas. O planejamento do policiamento ostensivo e sua coordenação são competências dos oficiais presumivelmente preparados e capacitados para isso, e que devem, portanto, contemplar a priorização do atendimento das reais necessidades de uma sociedade que anseia por uma polícia ágil, forte e respeitada.

* Coronel PM da ativa. Ex-Comandante-Geral da Polícia Militar de Roraima.

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Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal FolhaBV