OPINIÃO

Um caso de autofagia: a sociedade e a extrema direita

Sebastião Pereira do Nascimento

Atualmente, é inegável que a população global vive uma severa crise de desconstrução dos valores humanos em toda sua plenitude. No Brasil, essa desvalorização desponta na mesma intensidade, gerando incertezas à sociedade brasileira que vivencia, de forma claudicante, um contínuo processo de declínio ético-moral, em decorrência do fracasso da mobilização coletiva, onde as pessoas manifestam seus mais intensos desejos e os colocam em práticas através de diferentes manifestações: verbais, psicológicas ou físicas.

De forma sistemática, essas anomalias, à deriva no Brasil, trazem à luz uma realidadesombria presente nas diversas categorias da sociedade brasileira, a qual é parte daquilo que o antropólogo Sérgio Buarque de Holanda chama de povo “cordial”, onde muitas das manifestações de violência social vêm do interior do sujeito, disfarçadas de “hospitalidade” e “afeto”. Sendo essa predisposição decorrente de uma herança histórica, onde a sociedade teria desenvolvido uma propensão à informalidade e à intransigência. O que se deve ao fato de a mesma ter sido concebida de forma coercitiva e unilateral, não havendo diálogo entre governantes e governados ou entre patrões e empregados.

Noutro enquadramento, o teólogo Leonardo Boff diz que essa violência social também pode ser estrutural, resultante de desigualdades econômica, política e cultural que, por extensão, leva a caracterizar o povo brasileiro como um povo “cordial” e “passional”, visto que se mostra motivado excessivamente pelas paixões da discriminação e da intolerância, o que qualifica a sociedade brasileira como uma entidade cordial-passional.

Também, como especulam outros autores, pode-se dizer que esse legado da violência social à brasileira procede do arquétipo da “casa grande”, introjetado historicamente em todas as estratificações sociais, sendo os grupos humanos estigmatizados como “minoria social” (pobres, negros, indígenas, homoafetivos, refugiados, etc.), os mais hostilizados e vilipendiados, mesmo pelas entidades públicas que revelam diversas formas de violências estruturais de modo intolerável.

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Contudo, ainda que imputemos essa herança maldita impregnada na sociedade brasileira aos colonizadores, é preciso dizer que, por natureza própria, o ser humano é sim, um ser que guarda em si o bem e o mal. E, a depender dos estímulos oferecidos a cada indivíduo, ele opta por externar aquilo que é de mais gratificante para ele, tanto em relação ao fazer o bem quanto em relação ao fazer o mal. Restando dizer que, dependendo da escolha, o lado preterido é sempre depreciado.

Aqui cabe também dizer o quanto das virtudes morais se entrelaçam com as manifestações da pessoa humana. Sendo as virtudes, atributos reguladores das forças que impulsionam a pessoa para o agir correto, uma vez que, sob a égide das virtudes, a pessoa é continuadamente orientada a filtrar sua consciência. E, a rigor, uma consciência limpa sempre prenuncia fazer o bem para o bem de todos. Enquanto que, sem o aporte das virtudes, a pessoa tende a agir sob impulsos imoderados, sem controle de seus apetites, recorrendo ao que tem de mais ultrajante na sociedade.

O distanciamento das virtudes pela sociedade contemporânea talvez seja um dos fatores de maior contribuição para o aumento dos prejuízos humanos. Algo que traz à tona a progressiva ascensãodos valores defendidos por seguidoresda extrema direita em várias partes do mundo, variando de atitudes conforme o contexto histórico e geográfico, tendo como afinidade a ideologia ultraconservadora, onde só o fato de ser conservadora já traz em si uma ideia ultrapassada de um mundo que não condiz com a realidade temporal presente.

Esse movimento retrógrado e violento, remasterizado a partir do fascismo e do nazismo do início do século XX, se nutre de posturas autoritárias e promove uma ordem social hierárquica, na qual prevalece o ufanismo (um nacionalismo exacerbado) e as teorias da conspiração em defesa do protecionismo e de uma hostil visão homogênea da identidade cultural e nacional. E, por questões óbvias, seus adeptos, por estarem aprisionados ao passado, não evoluem como um ser humano e, por conta disso, acabam ruminando infindas contradições e incoerências que resultam em violentas desordens sociais.

Aqui no Brasil, os defensores da extrema direita, ainda que se dizem patriotas, seguem demonizando o país, atacando a democracia, afrontando as instituições, vandalizando o patrimônio público, desrespeitando a constituição e tramando golpe de estado, inclusive atentando contra a soberania do país. Diante desses insultuosos desejos, esses sicários extremistas se vestem de verde e amarelo, mas beijam a bandeira estrangeira, numa perfeita referência ao “complexo de vira-lata”, como bem disse Nelson Rodrigues, ao se referir aos brasileiros que se curvam aos valores de outros países e desprezam os valores nacionais. E, ainda como perfeitos idiotas, acreditam piamente que Donald Trump (atual presidente estadunidense) irá se fantasiar de super-homem e virá “salvar” o Brasil, não se sabe de que ou de quem. Sabe-se que as disfunções urdidas pela extrema direita são as principais ameaças para o país.

Como se estabelece em outras partes do mundo, aqui no Brasil a extrema direita também se projeta como uma sociedade amorfa, constituída de elementos de péssima formação intelectual, cultural e republicana, que sofrem de profunda oligofrenia — déficit de inteligência composto pela tríade: debilidade, imbecilidade e idiotia. Portanto, é uma casta social débil, imbecil e idiota que, como metástase humana, ameaça destruir o país. Fazendo um trocadilho com o que diz a filósofa Marilena Chauí sobre a sociedade brasileira, essa extrema direita é o que tem de maior aberração na atualidade. Ela é uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta, uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante. Logo, pessoas assim não aceitam viver num mundo harmônico, não aceitam viver entre diferentes grupos sociais, não se alimentam de educação e de cultura e, sobretudo, não consentem voltar à civilização.

Na esteira da ignorância, os adeptos da extrema direita acabam por aplaudir as mazelas brasileiras, já que são cínicos, insolentes e detratores da pátria, inclusive lacaios ferrenhos de líderes mundiais autoritários que tentam ditar uma nova ordem global, a qual coloca em risco a ordem constitucional e a própria autodeterminação dos povos.

Não o bastante, quando as diferentes categorias ultraconservadoras se unem em prol dos interesses mais ultrajantes, se convertem numa massa humana destrutiva e passam a pensar e agir contra os próprios interesses essenciais, perdendo todo o poder de sentimento humano. É quando repetidas vezes disseminam seus piores instintos e suas incoerências na direção de persuadir as mentes mais doentias — que seriam as pessoas mais passíveis de doutrinação —, e como categorias que vivem em constantes conflitos, são sujeitas a esterilidade mental, sendo incapazes de corresponder aos valores mais relevantes da pessoa humana — é como se fosse uma autofagia, a sociedade sendo carcomida por sua própria criatura: a extrema direita.

Assim, são os aderentes da extrema direita, uma corja de sujeitos acéfalos, em franca expansão, que navegam pelos mares da estupidez se opondo contra as instituições democráticas, os direitos humanos, o meio ambiente, as questões de gênero, os imigrantes e as minorias sociais, etc. Também passam a defender de maneira vil a pureza racial e cultural, bem como uma economia controlada pelo Estado e as práticas contraproducentes aos interesses do país. Através de diferentes condutas, quando não enaltecem, minimizam os hediondos efeitos da escravidão e da ditadura no Brasil e do holocausto provocado pelo nazismo. A partir dessa perspectiva extremista, alimentam a polarização social e se colocam como inimigos da ciência, do conhecimento, do intelecto e de todas as expressões culturais. Sob um falso argumento, distorcem a verdade sobre os adversários e partidos políticos e maldizem o sistema de eleições democráticas. E, sem o mínimo conhecimento científico, se posicionam contra o uso de vacinas, inclusive da Covid-19, que, segundo o Ministério da Saúde, matou mais de 715 mil pessoas no Brasil e mais de 15 milhões em todo o mundo (dados da Organização Mundial de Saúde).

Em que pese tudo isso, os adeptos do extremismo se afirmam também em favor da violência quando defendem a liberação de armas para a população, inclusive municiando fortemente as milícias urbanas. Uma atitude que incentiva a violência civil, aumenta a insegurança pública e prioriza a hostilidade em detrimento da harmonia; uma política beligerante e antissocial que leva ganhos exorbitantes aos contraventores, contrabandistas e fabricantes de armas.

Fora isso, em decorrência da falência intelectual, essa manada de gente exercita suas idiotices pregando o negacionismo em relação ao aquecimento global e afiançam a esdrúxula ideia do terraplanismo, ou seja, a ideia de que a Terra é plana — uma teoria conspiratória sem nenhum rigor científico. Um fato intrigante é que, ao mesmo tempo em que se busca massificar a teoria do terraplanismo, vê-se também, a partir da segunda década dos anos 2000, uma onda de políticos negacionistas, passando de pessoas anteriormente inexpressivas à posição de líder em seus países (p. ex. Donald Trump (EUA), Boris Johnson (Reino Unido), Jair Bolsonaro (Brasil), Javier Milei (Argentina), entre outras figuras burlescas e caricatas. Logo, adotando uma postura antiética e imoral, eles cuidam de disseminar desinformações com o intuito de manipular a opinião pública e fortalecer narrativas de que existe uma ameaça constante à nação.

*Filósofo, escritor e consultor ambiental – autor de diversos artigos científicos, ensaios e livros, dentre eles “Recado aos Humanos” (Editora CRV). Membro do corpo editorial da revista “Biologia Geral e Experimental”.

“As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Jornal”

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