MARCAS DE UMA PANDEMIA

A dor de quem perdeu familiares para a Covid-19: ‘Se soubesse que meu pai havia morrido, teria desistido’

Esse é o relato do servidor Kennedy Guimarães, que perdeu a mãe, o pai e a irmã para o coronavírus enquanto lutava pela própria vida em 2021

Kennedy Santos Guimarães, servidor público. Foto: Nilzete Franco/FolhaBV
Kennedy Santos Guimarães, servidor público. Foto: Nilzete Franco/FolhaBV

Em meio aos cinco anos do primeiro caso de Covid-19 registrado em Roraima, a pandemia deixa marcas profundas na memória. As histórias de perda, luto e superação se entrelaçam, expondo a devastação que a doença provocou nas famílias e na sociedade. A perda de vidas, a dor das despedidas não realizadas e o sofrimento de quem perdeu entes queridos de forma repentina. Muitas vezes, sem poder se despedir, continuam a ecoar.

Entre essas histórias, a de Kennedy Santos Guimarães, servidor público de 44 anos, reflete o impacto direto da pandemia. Ele perdeu a irmã, a mãe e o pai em um período de apenas 17 dias, entre março e abril de 2021. Ele também enfrentava uma luta pela vida.

A família teria seguido as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) à risca: higienizavam compras, usavam máscara e mantinham isolamento. No entanto, um ano após o decreto de pandemia, a irmã dele, Karen Tauanny Santos Guimarães, de 33 anos, teria ido ao salão. Dias depois, foi diagnosticada com o vírus. Ela ficou isolada na casa dos pais.

“Estava todo mundo isolado. Meu pai também estava isolado em casa com a mamãe, e não recebia visita. Foi só essa saída dela. Depois ela começou a passar mal [com Covid-19], fomos tratando, tratando e tratando em casa. Enfermeiro, médico, tudo em cima dela. Aí teve um dia que ela não aguentou. Ela falou: ‘maninho, me leva pro hospital, porque eu não aguento mais não'”, contou Kennedy.

Dias após a entrada de Karen no Hospital Geral de Roraima (HGR), a mãe, Maria Santos Guimarães, de 63 anos, foi internada com os mesmos sintomas. Mais alguns dias depois, ao completar 10 dias na unidade, Karen foi entubada. Segundo o irmão, ela sabia que não resistiria, pois havia pedido para ele cuidar do sobrinho. Ela morreu no dia 30 de março de 2021. Depois de cinco dias, em 4 de abril, Kennedy também viu a mãe não resistir ao vírus dentro do hospital.

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A impossibilidade de se despedir

Diante das perdas, o servidor chegou a enterrar a mãe e a irmã, mesmo não podendo ver os rostos pela última vez. Em casos de morte por Covid-19, os corpos são mantidos por camadas protetoras de plástico, além de caixão fechado com pregos, conforme relembrou Kennedy.

“Eu não sei nem quem é que estava enterrado dentro daqueles caixões porque os caixões eram pregados e as pontas dos pregos eram viradas. O corpo era enrolado em uma lona, colocado em uma bolsa e depois dentro do caixão. Penso, às vezes, porque eu não vi ninguém [da minha família] lá dentro, que eles estão viajando. […] O maior trauma do ser humano é não poder velar o teu ente querido”, comentou ao mencionar uma pequena cerimônia da mãe e a despedida da irmã.

Ao acompanhar Karen no HGR, o servidor acabou sendo contaminado pelo Covid-19. O pai, Noé Guimarães Ribeiro, de 65 anos, também já tinha apresentado sintomas. Contudo, não estava tão grave quanto Kennedy, que ficou com 90% do pulmão comprometido.

“Se eu soubesse que o meu pai tinha morrido, eu tinha desistido. Porque eu ainda enterrei a minha mãe e a minha irmã, mas o meu pai… a gente adoeceu junto. Ele ficou numa casa e eu fui pra outra porque senão ia morrer os dois. Mas eu pensei que ele tinha se salvado. No dia 21 de abril, foi quando eu comecei a [perceber]… esconderam tudo de mim. O pessoal sabia. Perguntei da minha mulher: ‘cadê meu pai?’. Ela dizia que ele estava bem, mas eu percebi naquele dia que ele se foi”, relembrou Kennedy, emocionado.

O dia em que acreditou que ia morrer

Kennedy seguiu o tratamento em casa. Foto: arquivo pessoal.

Antes da perda do pai, Kennedy Santos Guimarães relembrou o dia 17 de abril de 2021, quando se viu à beira da morte devido o vírus. Ele contou que, ao tentar se deitar, sua saturação caiu drasticamente de 91 para 63. Ele ficou sem ar. A situação teria durando um minuto.

“Eu voltei para posição que eu estava e comecei a orar. Eu vi a saturação subindo, quando chegou em 89, parece que o pulmão abriu. Foi a hora que eu consegui respirar. Aquele foi o dia mais complicado, que eu achei que ia morrer”.

Para Kennedy, a recuperação foi possível. No entanto, o trauma das perdas são marcas que permanecerão para sempre na memória. Quase quatro anos depois, ele destacou que as cicatrizes profundas da pandemia o ensinaram a valorizar a vida de quem se ama: “hoje a gente está aqui, mas daqui a pouco a gente não sabe”.

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