JESSÉ SOUZA

Um ano de impunidade no caso do Cantá, com famílias ainda sendo pressionadas

Casal foi executado a tiros por não ceder à pressão para vender ou trocar terreno por outro (Foto: Divulgação)

O fatídico caso do assassinato do casal de agricultores Jânio Bonfim de Souza e Flávia Guilarducci, na região do Surrão, no Município do Cantá, irá completar um ano no dia 23 de abril sem que o principal suspeito de ter cometido o bárbaro crime tenha sido preso, o empresário Caio Porto, que está na lista de procurados da Interpol, que é a Organização Internacional de Polícia Criminal.

Só este fato demonstra o poderio que envolve este caso, que teve como motivação uma disputa agrária, inclusive com áudio gravado pela mulher que foi executada a tiros, junto com o marido, no qual se fala abertamente de irregularidades no órgão fundiário estadual, o Iteraima, que está sendo alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Grilagem de Terras na Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR).

Não se trata de qualquer crime, pois envolveu a presença no local do crime de um capitão da Polícia Militar de Roraima, Helton John Silva de Souza, que à época era chefe de segurança do governador e que chegou a citar em seu depoimento não apenas o governador, mas também o comandante da PM, Miramilton Goiano, que já era investigado pela Polícia Federal por venda ilegal de armas junto com seu filho, um policial penal.

A título de contextualização, conforme inquérito 3027/2022 da Polícia Civil de Roraima, as investigações começaram a partir do caso da tentativa do roubo de um avião usado no garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, em setembro de 2022, quando descobriu-se a existência de uma milícia formada por PMs. O nome dos dois surgiu novamente em outra investigação, desta vez para desarticular uma facção que atuava dentro da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo que comercializava armas para o narcogarimpo.

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Não por coincidência, o duplo assassinato no Cantá ainda tem entre os envolvidos um atirador esportivo, ou seja, um CAC, sigla para Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador, atividade esta que teve as portas abertas no governo passado para ter acesso amplo a armas e munições. Essa informação é apenas para situar o que está envolvido no “caso do Surrão”.

Apesar da ampla repercussão do duplo homicídio, pelos motivos acima expostos, a pressão aos pequenos agricultores com posse de terras no Cantá não parou, principalmente famílias indígenas. Até houve um período de trégua, quando a polícia começou a investigar o assassinato, indo às propriedades no entorno para buscar informações e ouvir possíveis testemunhas.

Depois que essa fase passou, o assédio para que pequenos proprietários de terras vendessem suas propriedades aumentaram, especialmente famílias antigas da região, desta vez sob uma pressão maior, que é o medo dessas famílias de terem o mesmo destino daquele casal, já que o crime segue impune. Vale ressaltar que o casal foi morto por não aceitar vender ou trocar suas terras por outra. Quem não foi embora decidiu vender a maior parte de suas propriedades, ficando as pessoas “ilhadas” entre as grandes propriedades que estão se formando.

O cenário também mudou na região. Essas grandes propriedades que foram se formando mantêm vigilância armada, com sujeitos fazendo questão de mostrar que estão ali não apenas como vigias, mas como jagunços em gestos ameaçadores. As propriedades inclusive são vigiadas por câmeras de segurança. Quem parar nas proximidades dessas áreas com problemas mecânicos em seus veículos, por exemplo, é intimidado a cair fora.

Para piorar, essas famílias que resistem dizem que são pressionados a não plantar, sob pressão de fiscalizações constantes de que ali é área da “mosca da carambola”, portanto, não podem produzir para vender. Então, como é possível notar, há um movimento organizado e armado para que grandes proprietários se apossem de tudo. O caso do Surrão foi apenas mais um.  

Moradores da região afirmam que essa questão de grilagem de terras não é nova e acirrou-se desde uma misteriosa morte de uma mulher em 2016, que desapareceu e teve seu corpo desovado numa mata, cuja investigação da época envolvia um esquema na Prefeitura do Cantá que chegava a R$20 milhões, inclusive com a apreensão de carros de luxo, joias e dinheiro na casa da prefeita. Aliás, nada mais se ouviu falar sobre o caso.

Traduzindo tudo isso, a grilagem para fins de especulação imobiliária não foi contida a tempo e, mesmo diante de um bárbaro crime e da ampla repercussão que chegou aos gabinetes palacianos, não parou. Pelo que se vê, parece que tudo cairá no esquecimento em breve, quando sequer a fuga do principal suspeito não mais for lembrada.   

 *Colunista

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