Dos maiores retrocessos que o Brasil enfrenta, o crescimento acelerado da miséria e da desigualdade pegou de surpresa mesmo os mais pessimistas. O país que tirou cerca de 30 milhões de pessoas da pobreza em dez anos e se tornou referência em políticas de combate à fome de repente jogou de volta na miséria 6,3 milhões – praticamente um Paraguai.
As sequelas da recessão que devastou o mercado de trabalho e interrompeu o ciclo de redução da miséria não dão sinais de trégua. A menos que governo e sociedade civil se esforcem para redistribuir renda, o quadro social será de estagnação na melhor das hipóteses, alerta Marcelo Neri, diretor da FGV Social, braço da Fundação Getúlio Vargas para esta área.
Em 2030, quando vence o prazo para o cumprimento da primeira meta de desenvolvimento sustentável — erradicar a pobreza extrema –, o Brasil deve no máximo retornar ao patamar de antes da crise, estima Neri. Foi quando o País conseguiu sair do mapa da fome.
Na ocasião os brasileiros superaram com folga a meta do milênio que era reduzir a pobreza à metade num prazo de 25 anos. A implementação do Bolsa-Família para milhões de famílias acelerou esta tarefa no começo do milênio e inspirou outros países a fazerem o mesmo. Mas do final de 2014 a 2017, os indicadores dispararam, qualquer que seja o critério adotado para a definição de pobreza.
Está em condições de extrema pobreza quem ganha até US$ 1,90 por dia segundo critério do Banco Mundial. Em pesquisa recente sobre o tema, a FGV Social calculou linha de pobreza de R$ 233 por mês. Por este critério, o total de pobres no Brasil cresceu 33% em três anos de crise. Em 2018 pesquisadores estimam estabilidade do indicador – nada bom para um ano eleitoral, que historicamente resultados positivos.
Com a substituição da carteira assinada por bicos, cresce o contingente de trabalhadores sem acesso aos mecanismos de proteção social que estão relacionados à formalização, como salário mínimo e aposentadoria. Se nada for feito, a concentração de renda, que já cresce desde o último trimestre de 2014 sem parar, continuará aumentando. O aumento do índice de Gini, que mede a concentração de riqueza, segue num ritmo acelerado não visto desde 1989.
Neri, por outro lado, avalia que existe saída. É preciso olhar tanto para a questão econômica, buscando soluções para o equilíbrio fiscal, como para o social. “Hoje o debate está dividido em dois polos, como se uma coisa excluísse a outra … Mas tudo pode virar a favor se for dado um choque de confiança no sistema. E para isso vai ser preciso unir o país em uma agenda econômica e social consistente”.
A seguir a entrevista da Agência Nossa com Marcelo Neri, um dos maiores especialistas em combate à pobreza do País.
Agência Nossa: Qual a estimativa da FGV deste ano para o total de pobres no Brasil?
Marcelo Neri: Projetar curto prazo no Brasil está mais difícil do que projetar o longo prazo. Preferimos olhar para o horizonte de 2030, prazo para o cumprimento dos objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU cuja primeira meta é erradicar a pobreza. Até lá estimamos que se crescermos 2,5% ao ano (PIB) e mantivermos a desigualdade parada, o Brasil voltará ao patamar de antes desta crise, em 2014 quando 8,38% da população estava na pobreza.
Já tínhamos cumprido a meta do milênio em 2015. Nadamos e morremos na praia?
De 1990 a 2015 reduzimos a pobreza em 75%, superando a meta do milênio que era então reduzir a pobreza à metade em 25 anos. Ou seja, depois de dobrar a meta do milênio, teríamos uma década e meia perdida em termos de combate à pobreza.
Esta estimativa considera o aumento da desigualdade social nos últimos anos? Ou haverá trégua na desigualdade medida pelo índice de Gini?
Sim, estamos considerando que a desigualdade será mantida. Essa projeção é até certo ponto otimista, considerando que a desigualdade avançou por três anos consecutivos o que pode sugerir que entramos na fase ascendente de uma nova onda de desigualdade. Do final de 2015 até junho de 2018, o Índice de Gini de renda do trabalho habitual subiu a uma velocidade 50% maior do que vinha caindo na época de queda da desigualdade brasileira, iniciada em 2001. Isso não acontecia desde 1989, o pico histórico da desigualdade brasileira. Agora, mesmo neste cenário concentrador, investimentos voltados aos mais pobres dos pobres pode ajudar a combater a pior forma de desigualdade associada a pobreza sem gerar stress fiscal. Já dispomos desta tecnologia pronta para ser operacionalizada.
Qual plataforma?
O Bolsa Família é um mecanismo muito barato de distribuição de renda e de melhora no crescimento pelo lado da demanda. Para cada real gasto no Bolsa Família, há um aumento de R$ 1,78 no PIB no caso da previdência o impacto é de R$ 0,52.
Existe uma polarização da renda brasileira?
Nossas estimativas mostram um aumento da polarização de renda brasileira e não apenas mais desigualdade. A distribuição de renda passa a ficar mais parecida com o formato do Pão de Açucar, duas corcovas com um fosso no meio. Mas não é só renda ou riqueza, o pior é a fragmentação das idéias e a repulsa, lado a lado.
Então o que fazer?
A polarização da sociedade brasileira gera um risco alto para todos os lados. O ganhador leva tudo e o perdedor não leva nada. Unir o país diminui incertezas, é um jogo ganha-ganha. A dificuldade da situação atual é a falta de confiança generalizada no outro e no governo. Mas tudo pode virar a favor se for dado um choque de confiança no sistema mas para isso vai ser preciso unir o país em torno de uma agenda econômica e social consistente. O plano Real fez isso, a carta aos brasileiros de 2002 também.
Quais seriam alternativas de combate à pobreza que o governo Bolsonaro poderia adotar?
É preciso privilegiar a igualdade de oportunidades para os pobres e para as novas gerações. Uma reforma da previdência bem desenhada é capaz de fazer isso, a agenda de educação de qualidade incluindo educação financeira e em particular aspectos produtivos na base também. Empreendedorismo e regularização fundiária urbana também são agendas portadoras de futuro para quem ficou parado no século passado . Hoje o debate está apartado em dois pólos: na questão econômica, das reformas, contenção de gastos e aumento de produtividade; e na questão social. Se o governo se concentrar somente no social muito provavelmente vai aumentar a pobreza. Mas também não pode deixar de olhar para o social, investindo em melhoras na produtividade na base da distribuição de renda e na equidade dos gastos fiscais. É preciso trilhar pelo caminho do meio contemplando os dois lados da moeda.
*INFORMAÇÕES: AGÊNCIA NOSSA.