“Equidade na Primeira Infância: Os primeiros passos para um Brasil mais justo”. Este é o tema do VIII Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, organizado pelo Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), instituição independente que conta parceiros como o Centro de Desenvolvimento da Criança da Universidade de Harvard, Colégio de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Fundação Bernard Van Lee, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo (Insper). O evento foi iniciado na manhã dessa quinta-feira, dia 3, e vai até o fim da manhã de hoje, dia 4, e está acontecendo na Galeria Estação, no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
Conforme o NCPI, 1,5 mil inscritos estão participando do Simpósio que tem como objetivo discutir soluções para as desigualdades sociais que envolvem cerca de 20 milhões de crianças brasileiras com idades de 0 a 6 anos, quebrando os ciclos de vulnerabilidade nos quais muitas famílias estão inseridas.
“Para melhorar educação e saúde, temos que começar cedo”, diz David Williams (Fotos: Flávio Moret)
Dentre os palestrantes estão o renomado médico oncologista, cientista e escritor Dráuzio Varella, que vai propor uma rodada de conversa sobre a primeira infância, e David Williams, que é Professor do Departamento de Saúde Pública e diretor do Departamento de Ciências Sociais e Comportamentais da Escola de Saúde Pública de Harvard. Ele desempenhou um papel de liderança nacional, nos Estados Unidos, no aumento dos níveis de consciência das iniquidades em saúde.
Williams apresentou propostas relacionadas a um ambiente favorável à equidade e à perspectiva da epigenética, com dados comparativos dos casos de mortalidade infantil nos EUA, América Latina e África do Sul, especialmente no que se refere às desigualdades étnicas e raciais, demonstrando que crianças filhas de negros, índios e asiáticos morrem muito mais que filhos de brancos, por estarem mais expostas aos riscos que cercam seus contextos sociais.
“O lugar onde se mora importa porque dá acesso a escolas, natureza, cultura e educação. O racismo produziu um verdadeiro sistema fraudulento. Estereótipos negativos sobre raça permanecem profundamente enraizados em nossa cultura e desencadeiam discriminação. O estresse vivido por crianças, durante a gestação, é tóxico. Os precipitadores incluem pobreza extrema, abuso físico e emocional, negligência crônica, depressão materna grave, abuso de substâncias ou violência doméstica. Os estudos revelam que estresse diminui o tamanho das regiões do cérebro e pode causar alterações negativas em vários sistemas. Estressores, no início da vida e no período adulto, podem ser passados para as gerações futuras. Para melhorar educação e saúde, precisamos começar cedo”, enfatizou o professor norte-americano.
O professor economista Naércio Menezes, PhD pela Universidade de Londres, relatou sua trajetória para chegar aos estudos da primeira infância. “Ainda na graduação de economia eu percebi as desigualdades de renda no Brasil. O que não podemos admitir é que as pessoas nasçam com oportunidades diferentes. Vários estudam mostram que os problemas na infância vão se acumulando pelo resto da vida. Ao investir na primeira infância, impedimos uma série de problemas futuros. O Brasil precisa detectar as famílias pobres, as mulheres que estão grávidas e trabalhar neste contexto. No Brasil temos uma diferença muito grande entre quem está no topo da distribuição de renda e quem não está. O desafio é a equidade. É saber como o Brasil pode fazer mobilidade dessas desigualdades”, ressaltou.
Os números apresentados por Menezes indicam que no Norte do Brasil, mais de 445 mil crianças vivem abaixo da linha da pobreza, cuja renda familiar é de até R$ 170 por mês, somando 22,8% das crianças que vivem na região. O pior índice é o do Nordeste, que tem mais de 1,5 milhão de crianças em famílias que estão em péssimas condições socioeconômicas, totalizando 28,4% delas. No sudeste apenas 8% vivem na extrema pobreza, seguido do Centro-Oeste, com 7%. A menor incidência de crianças em condições vulneráveis é no Sul, com 6,2%. Em números gerais, o Brasil tem 15% de seus infantes vivendo abaixo da linha da pobreza.
Especialistas discutem políticas públicas para minimizar desigualdades
A coordenadora da Unidade de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil) Samantha Dotto Salve, que tem passagens por ONGs como a Cruz Vermelha e pelo Sistema ONU, apresentou os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) como orientadores das Políticas Públicas de Primeira Infância. Segundo ela, pesquisam evidenciam que, no Brasil, seis em cada 10 crianças vivem na pobreza.
“Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável reconhecem que o desenvolvimento da primeira infância pode ajudar a impulsionar a transformação que esperamos alcançar nos próximos 15 anos. A intenção é assegurar, até 2030, a todos os meninos e meninas, o desenvolvimento da primeira infância, acesso aos cuidados e à educação infantil de qualidade, de modo que estejam preparados para o ensino fundamental”, destacou Samantha.
Durante a tarde de ontem, duas pesquisadoras contribuíram com discussões em torno da integração e focalização de políticas, riscos e oportunidades nos primeiros três anos. Uma delas é a professora do Programa Avançado de Gestão Pública no Insper, Cristina Kiomi Mori. Ela reforçou a importância de uma atuação dos governos em processos de planejamento estratégico, desenvolvimento organizacional. “Nos municípios, as secretarias de Saúde, de Educação, as creches, escolas e demais instituições, devem trabalhar para que a criança seja o centro. Não se trata de alguém trabalhar mais que o outro. É um trabalho integrado. A questão é: que governança nos fará chegar melhor à ponta?”, questionou.
A segunda pesquisadora foi a professora catedrática na Universidade de Nebraska-Lincoln, Helen Raikes, especialista em Estudos da Criança, Juventude e Família na Universidade de Nebraska-Lincoln, nos Estado Unidos. Seus estudos são focados, principalmente, em melhorar os resultados e oportunidades de crianças de baixa renda antes do início da vida escolar, considerando desenvolvimento emocional, linguagem e fisiológico das crianças. Ela salientou que os primeiros cinco anos precisam ser parte integrante do sistema educacional de uma nação.
Os últimos palestrantes do Simpósio foram Raquel Bernal, professora na Universidade de Los Andes, em Bogotá, Colombia; Daniel Domingues dos Santos, professor associado de Economia da Universidade de São Paulo, atualmente coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Economia Social (LEPES), além de membro ativo do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), Rede Ciência pela Educação (CpE), e Edulab 21 e Daniella Ben-Attar, representante de Israel da Fundação Bernard Van Lee, com mais de 20 anos de experiência em desenvolvimento internacional, gerenciando programas sociais e econômicos em todo o mundo. Ela trabalhou como consultora independente do Banco Mundial, ONU HABITAT e UNIFEM, além de empresas e ONGs. Os três exploram a qualidade das políticas públicas, programas e projetos como componente chave para a equidade.
Secretária municipal de Boa Vista destacou o trabalho desenvolvido na primeira infância
A secretária municipal de Gestão Social, Simone Queiroz, é uma das participantes do Simpósio, como representante da Prefeitura de Boa Vista. “Eu estou nesse evento representando a prefeita Tereza, que foi uma das convidadas. Sempre que possível, nós estamos participando de todas essas oficinas, seminários, simpósios que estão tratando do tema da primeira infância. Boa Vista está empenhadíssima. Nós somos a Capital da Primeira Infância. Eu tenho certeza disso. No Brasil nos destacamos pelo trabalho que fazemos na primeira infância. Quando a gente vem num evento como esse, conseguimos perceber que estamos no caminho certo, mas sempre tem uma experiência nova, uma nova proposta do que a gente pode aplicar”, reconheceu.
A Secretária pontuou que transforma o conhecimento adquirido em prática. Uma das experiências citadas por Simone, que devem ser alinhadas ao trabalho que a Prefeitura de Boa Vista tem feito, é dar oportunidade para as crianças brincarem na rua. “Todo mundo vê que a rua é para carros, mas a rua é para as pessoas e, principalmente, para que as crianças possam usufruir delas. Então, neste domingo (6), faremos o primeiro movimento de fechamento de rua para as crianças brincarem num determinado horário. Uma rua será fechada. Muitas coisas que se aplica em Boa Vista, aprendemos nesses eventos”, frisou.
A via pública escolhida para atividades infantis deste domingo é a avenida Ene Garcez, no perímetro entre o Círculo de Oficiais de Boa Vista (COB) até a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), no intervalo das 8h às 12h.
Ministro Osmar Terra diz que Roraima é um exemplo na política de acolhimento
Ministro da Cidadania, Osmar Terra, participou do Simpósio para falar de suas experiências com a primeira infância (Fotos: Flávio Moret)
Para encerrar o primeiro dia Simpósio, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, convidado pela organização do evento, fez um panorama das diversas realidades do Brasil, por ser um país de dimensões continentais, o que para ele faz com que os desafios sejam maiores.
Ele aproveitou para falar das ações do governo federal no combate às desigualdades no país, especialmente quanto à primeira infância. “Nós conseguimos convencer o governo da importância da primeira infância. O trabalho está crescendo e hoje a prioridade é a primeira infância. Não adianta só levar a criança para a creche, porque ela também precisa de afeto. Na primeira infância o desafio é avaliar a criança. Antes só avaliávamos a criança na escola, hoje estamos preocupados em lidar com o início. Tem um método inovador, tanto canadense quando americano, que calcula, por meio de um algoritmo, o desenvolvimento da criança de seis em seis meses, com base no apego materno. A raiz da desigualdade humana está nessa fase”, declarou Terra.
Em tempos de contingenciamento de recursos, o ministro considerou que é preciso mostrar ciência, o impacto que tem cada metodologia e convencer as pessoas de que a primeira infância é prioridade. “Temos que convencer as pessoas e priorizar. Pode faltar dinheiro para qualquer coisa no governo federal, menos para a primeira infância. A primeira infância impulsiona o processo de equidade no mundo”, complementou.
Ao ser questionado pela equipe da Folha sobre o desafio da equidade no estado de Roraima, que nos últimos anos recebeu milhares de famílias com crianças venezuelanas, atribuiu que a situação do estado só não está pior por conta dos esforços dos governos estadual e municipal. “Roraima é um estado que tem muitas dificuldades. A quantidade de venezuelanos que entrou é extraordinária para o tamanho da população do estado, então a gente tem que ajudar. A Operação Acolhida está funcionando bem. O começo foi uma tragédia, mas ali teve um grande trabalho da prefeita Teresa Surita. Ela fez toda a diferença porque conseguiu garantir atendimento mesmo sem ter recursos, mas conseguiu planejar o atendimento. Em relação ao governo do estado, há uma dificuldade econômica, mas agora o governador está equacionando isso. Hoje, a política pública de acolhimento aos venezuelanos é um modelo em Roraima. Se conseguirmos trazer para o interior do Brasil a maior parte dessas pessoas, daremos uma grande contribuição. O que queremos é que a Venezuela deixe de ser uma ditadura e que seus filhos possam voltar a trabalhar e viver com qualidade de vida minimamente descente”, finalizou. (J.B)