Foi a mãe quem percebeu. Mas insegura e sem reação, recorreu à tia das crianças, pedindo que a acompanhasse no registro de um Boletim de Ocorrência.
No Brasil, três crianças ou adolescentes são abusadas sexualmente a cada hora. No último ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) registrou pelo menos 17 mil ocorrências desta natureza. Em mais de 70% dos casos, o abuso ocorre na casa da própria vítima e, em 40% deles, o crime é cometido pelo padrasto ou pelo próprio pai.
“Ele estava agredindo o menino de 12 anos e abusando sexualmente da menina de 10 anos. A outra menina, de 7 anos, também já estava começando a ser aliciada por ele”, contou a tia.
Após o registro do BO, a mãe e a tia foram aconselhadas a procurar o Conselho Tutelar para dar seguimentos às providências. O atendimento, no entanto, não foi imediato. Somente na manhã do dia seguinte, quando a tia ligou para a unidade, o caso foi recebido pelo conselheiro Franco da Rocha, que iniciava o plantão.
A primeira medida foi dar o Termo de Responsabilidade para a mãe, visto que a guarda das crianças era do pai. Logo em seguida, o conselheiro se deslocou à casa onde as crianças estavam para a retirada delas do local. A tia explicou que a mãe passou por problemas após a separação do casal, o que teria facilitado a guarda dos filhos com o pai albergado. Os detalhes do crime, no entanto, só vieram à tona nos dias seguintes.
O CASO – O pai teria começado a abusar da menina quando ainda morava na casa da irmã dele. Depois disso, passou a viver em apartamentos, mudando de três em três meses, a fim de que a vizinhança não percebesse o comportamento e a rotina da casa. A menina, de 10 anos, só conseguiu começar a falar sobre o que estava passando após o segundo dia fora da casa, e da guarda do pai.
“Ela só chorava. Não conseguia dormir, nem comer, nem falar. Ele fez a cabeça dela nesse sentido, para que não abrisse a boca e contasse o que acontecia. Quando eu encontrava com eles em algum lugar, as crianças não olhavam pra mim, falavam sempre de cabeça baixa”, contou a tia.
As consequências fisiológicas do abuso vieram com o exame de conjunção carnal feito junto ao Instituto Médico Legal (IML). No resultado, a criança, de apenas 10 anos, apresentou infecção e inflamação, além de dores internas.
Quando começou a dar mais detalhes, a menina contou que alguns episódios ocorriam quando a mãe não visitava as crianças. “O pai ficava com raiva e batia no menino, que era feito de empregada doméstica, além de abusar da menina. Penso que ele queria fazer isso com a mãe, mas como ela não aparecia, ele descontava nas crianças”, disse a tia.
Atualmente, as crianças moram com mãe enfrentando certa dificuldade financeira, mas vivendo em um ambiente saudável e tranquilo. O pai biológico está preso há cerca de dois meses.
“Eles sorriem. A gente vê hoje o sorriso que antes não víamos. Eles recebem acompanhamento psicológico que tem dado resultado. Já comem, dormem, brincam, como tem que ser”, falou.
A tia ressaltou ainda a importância de perceber comportamentos e modos que não são comuns nas crianças. “O mundo sempre teve monstruosidade, mas hoje ela está maior. Quem tem filho deve estar atento a todo comportamento novo, que muitas vezes é um pedido de socorro. A rebeldia, um olho baixo, um distanciamento… Tudo é um sinal”, comentou.
Conselho Tutelar registra quase 2.500 denúncias de crimes contra crianças e adolescentes
O Conselho Tutelar do Território II registrou um aumento de quase 13% no número de denúncias referentes à crimes contra crianças e adolescentes. Em 2018, foram 1.994 atendimentos envolvendo crimes de negligência, violência física, violência psicológica, estupro de vulnerável e outros. No ano passado, o número subiu para 2.246.
“As pessoas estão denunciando mais. Mesmo nos casos em que o agressor é um dos pais, a denúncia é feita por algum parente ou vizinho, que percebe a movimentação. É importante que a sociedade entenda que a proteção de crianças e adolescentes é um dever de todos”, falou.
O conselheiro Franco da Rocha explicou que as denúncias podem ser feitas pelo Disque 100, pelo número do Conselho Tutelar (3224-4664), ou na sede do Conselho, localizado na rua Dico Vieira 1497, bairro Caimbé, próximo a Fundação Bradesco. Em todos os casos, a identidade do denunciante é preservada.
Após receber a denúncia, o Conselho Tutelar encaminha a vítima ao Hospital da Criança para os primeiros atendimentos e, em seguida, ao Instituto Médico Legal (IML) para os exames necessários. Paralelamente, é aplicada uma Medida Protetiva para que a criança não permaneça no mesmo ambiente que o agressor e, posteriormente, um encaminhamento ao psicólogo.
“Deveríamos trabalhar com orientações, a fim de preparar as crianças, as famílias e a sociedade”, diz conselheiro tutelar Franco da Rocha (Foto: Nilzete Franco / FolhaBV)
O Conselho, por sua vez, elabora um relatório que é enviado ao Ministério Público, ao Juiz de Proteção da Criança e à Delegacia de Proteção da Criança e ao Adolescente, que também segue os procedimentos necessários para a prisão do agressor. Conforme o Artigo 217 do Código Penal, ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menores de 14 anos resulta em pena de oito ano a 15 anos de prisão.
“Acho que ainda pecamos. Deveríamos trabalhar com orientações, a fim de preparar as crianças, as famílias e a sociedade, a fim de prevenir esse crime cruel. A educação sexual deve ser abordada como disciplina nas escolas, com o intuito primordial de mostrar às crianças o que outras pessoas não podem fazer com elas”, falou.