Cotidiano

Mais de 90 trabalhadores viviam em condições análogas à de escravo em RR

Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas aponta outras formas possíveis de exploração como a sexual, adoção ilegal de recém-nascidos (especialmente em Roraima)

Dados do Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas mostram que 91 trabalhadores resgatados em Roraima, entre 2009 e 2019, trabalhavam em condições análogas à de escravo.

O relatório, que abrange o período entre 2017 e 2020, foi apresentado ontem, quinta-feira (29), véspera do Dia Mundial e Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. O material foi elaborado em parceria com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (Unodc).

Em 2017, ocorreu o primeiro resgate de venezuelanos em Roraima, que trabalhava em condições análogas à de escravo. Nos dois anos seguintes, 2018 e 2019, também foram resgatados outros trabalhadores venezuelanos em condições degradantes de trabalho.

Considerando o número total de 91 trabalhadores resgatados em Roraima, de 2009 a 2019, 19 deles eram venezuelanos, ou seja 1/5 das vítimas identificadas pelos auditores fiscais do trabalho.

Importante destacar que os venezuelanos resgatados possuíam grau de escolaridade superior à média dos brasileiros resgatados, o que indica a situação migratória como fator primordial de vulnerabilidade social.

Conforme relatório de fiscalização dos auditores fiscais do trabalho, que consta no Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas:

A própria condição de estrangeiro dentro de uma cultura estranha, somada à vulnerabilidade de estarem em situação irregular ou de refúgio, advindos de países em crise democrática, econômica e humanitária, não os permitia reclamar das condições de trabalho impostas pelos empregadores, tendo que se sujeitarem às irregularidades por necessidade de subsistência. A empresa, portanto, aproveitou-se da situação de vulnerabilidade dos trabalhadores estrangeiros para explorar sua mão de obra na forma de redução a condição análoga à de escravo.

Migração venezuelana

Nos últimos anos, a grave situação política e econômica presente na Venezuela provocou uma importante crise humanitária. No Brasil, a migração venezuelana se intensificou expressivamente em 2017, com 6.894 venezuelanos com registros ativos no país. Em 2018, esse número aumentou para 32.245; em 2019 atingiu 89.82849; e em 2020, alcançou-se a marca de 265 mil migrantes e refugiados venezuelanos que solicitaram regularização migratória.

Em 2018, por meio da Lei nº 13.684, de 21 de junho de 2018, o governo brasileiro, ao reconhecer a situação de crise humanitária na Venezuela, instituiu o Comitê Federal de Atendimento a Emergências, instância de governança intersetorial, para o acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade em decorrência do fluxo migratório.

Nessa onda migratória, devido às precárias condições econômicas, grande parte da população ingressou no Brasil por via terrestre através do estado de Roraima, destacando-se como principal travessia o trajeto entre a cidade de Santa Helena de Uairén (Venezuela) e Pacaraima (Brasil).

Pacaraima, com uma população estimada em 18.913 habitantes em 202051, sofreu uma sobrecarga de demandas por bens e serviços públicos com a chegada em massa da comunidade venezuelana. Assim, a estratégia adotada pelo Comitê Federal de Atendimento a Emergências, por meio da “Operação Acolhida”, foi de “interiorizar estas pessoas, de modo a descentralizar o foco das demandas para áreas com maior estrutura do que o estado de Roraima, o menos populoso do país”.


Imigrantes convivem com uma série de fatores de risco durante o deslocamento e a chegada ao país de destino (Foto: Getty Images)

A “Operação Acolhida” dispôs de três eixos de atuação53: organização da fronteira, por meio da oferta de documentação, vacinação e controle de entrada; acolhida, por meio de abrigos e alimentação aos migrantes; e interiorização, ou seja, o deslocamento voluntário de venezuelanos a outras partes do país com o objetivo de inserção no mercado de trabalho.

De acordo com os registros ativos no Brasil, 48% da população venezuelana no Brasil é feminina. Ainda que haja uma paridade entre os gêneros dos migrantes, essa relação não se reflete no acesso ao mercado formal de trabalho: em 2019, 5.936 mulheres venezuelanas foram admitidas, enquanto 14.801 homens foram admitidos. Esses dados refletem a discrepância no acesso a direitos e possibilidades de melhoria de vida entre ambos os gêneros.

Aqueles que saem da Venezuela convivem com uma série de fatores de risco durante seu deslocamento e na chegada aos países de destino, como sequestro, extorsão e tráfico de pessoas. Esse contexto já era grave antes da pandemia, e, atualmente diante da emergência sanitária, provavelmente se acentuaram as condições de vulnerabilidades dessas pessoas.

Recente pesquisa do UNODC56 sobre tráfico de pessoas no fluxo migratório venezuelano identificou inquéritos e processos judiciais em andamento referentes a situações de tráfico com venezuelanos para as finalidades de servidão (mendicância forçada) e exploração laboral. Esse relatório também apontou outras formas possíveis de exploração como a sexual, adoção ilegal de recém-nascidos (especialmente em Roraima), casamento servil e casos de “mulas” de tráfico de drogas.

O trajeto dos centros urbanos de Roraima para o interior do estado, assim como para Manaus e Guiana foi apontado como provável rota para exploração sexual em garimpos. Por outro lado, parece que as vítimas exploradas como “mulas” desconhecem o percurso que farão e são muitas vezes interceptadas nos aeroportos e, posteriormente, detidas. Nestes casos, em geral, o Brasil é um país de trânsito e não de destino.

Nesse fluxo migratório, as mulheres trans se encontram em particular situação de vulnerabilidade. Em Boa Vista foram identificadas travestis e transexuais exercendo a prostituição. Também há relatos de tráfico para a exploração sexual, cometidos tanto por brasileiros quanto por venezuelanos (em geral, companheiros das vítimas). Essas mulheres chegaram ao Brasil por via terrestre e algumas se encontravam em abrigos. Nesses locais, elas tiveram que se caracterizar de forma masculina para serem aceitas e à noite assumiam a identidade feminina para exercerem a prostituição.

Fonte: Ministério da Justiça