O Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública para obrigar os governos federal e de Roraima a promoverem a exumação e o traslado dos corpos de indígenas Yanomami enterrados em Boa Vista durante a pandemia da Covid-19. Procurados, os alvos da ação ainda não se pronunciaram até a publicação da reportagem.
A medida foi tomada depois que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde, se negou a cumprir recomendação expedida no ano passado, alegando risco epidemiológico e indisponibilidade de verbas para a ação.
Os Yanomami possuem rituais fúnebres próprios realizados por suas comunidades, de acordo com a cultura de cada subgrupo. Assim, o MPF defende que a manutenção dos restos mortais em cemitério viola o direito fundamental de luto dos povos indígenas. O órgão pede que a exumação e o translado ocorram em até 60 dias, seguindo todos os protocolos de biossegurança necessários, e que o DSEI (Diretório Especial de Saúde Indígena) Yanomami contrate uma empresa especializada para o serviço.
Ao Governo de Roraima, que proibiu os rituais fúnebres indígenas, o MPF pediu na Justiça a concessão de tutela provisória (mecanismo pelo qual o magistrado antecipa a uma das partes um provimento judicial de mérito ou preventivo antes da decisão final), para que não dificulte os procedimentos de exumação de quaisquer cadáveres de Yanomami sepultados com hipótese diagnóstica ou infecção confirmada de Covid-19.
Impasse
Os indígenas em questão foram removidos para Boa Vista por apresentarem complicações graves da doença e, apesar do atendimento hospitalar, morreram em decorrência do coronavírus. Na época, ainda nos primeiros meses da pandemia, por haver incerteza científica sobre a segurança sanitária da remoção de restos mortais, a Defesa Civil de Roraima elaborou norma proibindo a população indígena de realizar seus rituais fúnebres, prevendo tão somente a exumação dos corpos após o fim da pandemia.
Em dezembro de 2021, baseado em pareceres favoráveis do Instituto Médico Legal (IML) de Roraima e da Vigilância Sanitária de Boa Vista, o MPF recomendou aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas do Leste de Roraima e Yanomami para que realizassem o processo de exumação e transferência dos restos mortais de indígenas enterrados sem autorização das comunidades, custeassem o procedimento e prestassem orientações às comunidades sobre as medidas de biossegurança necessárias.
No entanto, a Sesai, que coordena e supervisiona a saúde indígena, não acatou à recomendação, alegando risco epidemiológico para as comunidades indígenas e falta de atribuição para custear o processo de exumação e devolução dos corpos.
Na ação ajuizada, o MPF argumenta ainda que o ritual fúnebre Yanomami, no contexto atual, é compatível com as orientações sanitárias. Conforme a ação do órgão, a devolução dos corpos já vem ocorrendo no DSEI Yanomami e em outros Estados brasileiros sem que tenha havido qualquer notícia de contaminação pela prática do ritual.
O MPF pede que haja antecipação da decisão, pois o tempo decorrido dos sepultamentos acentua o estágio de decomposição dos cadáveres, comprometendo a realização dos rituais fúnebres e prolongando o sofrimento dos familiares, da comunidade e, segundo a ótica tradicional dos Yanomami, do próprio morto, impactando indelevelmente a paz social das coletividades indígenas.
Caso semelhante de 2020
Há dois anos, indígenas da comunidade Wai Wai ajuizaram um pedido para que integrantes da etnia fossem exumados do cemitério de Boa Vista e levados para a localidade de origem. O processo, que tramita na 1ª Vara Federal de Roraima, já possui decisão que determina que o procedimento seja feito pela União. Diante da sentença favorável, no último dia 10, o MPF entrou com um pedido para exigir judicialmente o cumprimento da decisão. O pedido aguarda análise da Justiça.