Cultura

Líder indígena recebe título de Doutor Honoris Causa da Unifesp

Evento poderá ser acompanhado pela internet nesta quarta-feira, 15, a partir das 10h (horário de Brasília)

A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) entrega hoje, 15, o título de Doutor Honoris Causa a Davi Kopenawa Yanomami. A honraria é um gesto de reconhecimento das universidades a pessoas que deixam um marco de contribuição em certo campo de conhecimento, como as artes, as ciências e a educação. 

A Unifesp é a primeira universidade a outorgar o título ao líder e xamã yanomami. A indicação inaugura a lista dos contemplados pela instituição. 

“A outorga do título coroa um processo de busca por diálogos e descolonização de saberes em andamento na Unifesp. É parte desse esforço a criação da Cátedra Kaapora de Conhecimentos Tradicionais e Não Hegemônicos, em 2016, e, posteriormente, em 2020, da Cátedra Sustentabilidade e Visões de Futuro, com foco na área socioambiental. As cátedras foram proponentes do pedido de concessão do título, juntamente com o Projeto Xingu, que atua no campo da extensão universitária junto aos povos indígenas desde a década de 60”, destacou a Unifesp em nota.

“A proposta de concessão do título foi entregue à Reitoria em 19 de abril de 2021, juntamente com 472 assinaturas de apoio de docentes, técnicos e estudantes da universidade”, acrescentou.

O evento poderá ser acompanhado pela internet, a partir das 10h. A transmissão pode ser acompanhada pelo canal oficial da Unifesp no YouTube.

Retrospectiva

A mais cética das pessoas deve se sensibilizar ao assistir o filme Xapiri, mesmo na atualidade, quando completa 11 anos. A obra, ao assumir caráter experimental, de filme de arte, conduz o espectador a uma incursão pelo universo dos yanomami, convida-o a emprestar de xamãs desse povo, por 54 minutos, seus olhos e, com isso, avançar no entendimento de mundo do líder indígena.

Sem data certa, estima-se que Davi Kopenawa tenha nascido por volta de 1956, na vila yanomami de Marakana, que fica no alto do Rio Toototobi, a poucos quilômetros da fronteira entre Roraima e a Venezuela. Ele partiu de sua aldeia quando adolescente, para atuar como intérprete da então Fundação Nacional do Índio (Funai). 

Ao recuperar a história de Davi Kopenawa, constata-se que, além da magia das cerimônias que reúnem diversas lideranças do xamanismo, ele trabalha em busca de apoio e aliados para as causas que defende. Foi o caso de sua relação com o antropólogo francês Bruce Albert, com quem produziu Xapiri e também escreveu A queda do céu: palavras de um xamã.

Em conversa com Albert, que documentou os diálogos na obra, o líder indígena comenta que seus avós, que viviam perto das nascentes do Rio Toototobi, às vezes se deslocavam até as terras baixas. Lá, visitavam outros yanomami, que ficavam próximos do Rio Aracá. Nssa região é que se depararam com os primeiros brancos, que impressionavam com o uso de facões.

Davi Kopenawa conviveu e convive com não indígenas constantemente, desde que deixou a aldeia. Também conforme narra o livro, feito em coautoria com Albert no início dos anos 80, Davi Kopenawa casou-se com a filha de um respeitado xamã, na comunidade de Watoriki, onde permaneceu. A iniciação no xamanismo foi feita por seu sogro. Em sua iniciação, realizada “ao pé da montanha do vento”, recebeu, das entidades xapiri, o nome Kopenawa, em alusão aos espíritos das vespas kopena. 

Nunca houve descanso, em virtude de suas missões. No documentário A última floresta, com direção de Luiz Bolognesi, Davi Kopenawa comenta que, para ele, ficar longe da Terra Indígena (TI) Yanomami, a maior do país, com 9,6 milhões de hectares, é um sacrifício. Perde o contato com os sonhos que tem à noite, e os sonhos são fundamentais para os yanomami. No trecho, o líder afirma que não consegue nem mesmo dormir quando está nos grandes centros urbanos, cumprindo agenda.

A luta sem pausas e o preparo para encará-la é o que destaca o presidente da Associação Yanonami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), José Mário Pereira Goes, ao falar sobre Kopenawa, “Quando ele era jovem, já pensava em ser líder e defensor do território yanomami do Amazonas e de Roraima. É uma pessoa que pensa em todos, no território, na floresta, nos rios e nos igarapés”, diz.

Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, até 2021, a Terra Indígena Yanomami contabilizava quatro massacres – um ocorrido em Alto Alegre (RR), outro em Haximu (RR), o terceiro em Paapiú (RR) e o quarto na serra de Couto Magalhães (RR). Os episódios aconteceram em 2013, 1993, 1988 e 1987, respectivamente.  Como critério para definir massacre, a CPT entende que são casos em que três pessoas ou mais são mortas na mesma data e em uma mesma localidade, ou seja, em uma mesma ocorrência de conflitos pela terra. 

No fim da década de 80, mais precisamente, em 1987, 40 mil garimpeiros invadiram a TI. A quantidade era o dobro da população yanomami. Na época, Davi Kopenawa promoveu uma mobilização que atingiu escala internacional. Ali já estavam, entre outros parceiros de resistência, Albert e a fotógrafa suíça Claudia Andujar.

Claudia naturalizou-se brasileira e perdeu a família nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau. Assim como outros companheiros de luta, é chamada de “parente” por Davi Kopenawa, como se pode observar, inclusive, em documentários e vídeos de eventos públicos em que ele a menciona. Ela também ganhou o nome de “Napëyoma”, que significa “a mulher branca”.

Albert conta no texto Um mundo cujo nome é floresta, do livro Claudia Andujar: a luta yanomami, publicado em 2019, pelo Instituto Moreira Salles, que ele e Claudia se conheceram já em solo indígena, na década de 70. O francês era ainda um estudante, doutorando em antropologia. Ele, que já conhecia o trabalho fotográfico de Claudia, endereçou a ela uma carta de quatro páginas. O plano era organizar um programa de saúde, que atendesse aos yanomami do Rio Catrimani, que nasce na Serra Parima, considerada berço dos yanomami. “Em sua resposta, um mês depois, Claudia me informou que a epidemia de sarampo que se propagara em dezembro de 1976, a partir de um posto do serviço indigenista brasileiro, a Fundação Nacional do Índio (Funai), às margens do Rio Mapulau, acabara por dizimar a maioria dos habitantes dos afluentes vizinhos do alto Catrimani”, escreveu Albert. 

Em 1978, o grupo, juntamente com o missionário Carlo Zacquini, criou a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY) e se articulou para lançar campanha internacional de garantia dos direitos territoriais dos indígenas. O primeiro escritório da comissão era o apartamento de Claudia em São Paulo. A entidade depois ganhou o nome de Comissão Pró-Yanomami.

Em 2004, surgiu a Hutukara Associação Yanomami, presidida por Davi Kopenawa. Atualmente, a organização tem cerca de 200 membros e, em sua linha de frente, o filho mais velho de Davi, Dário Vitório Kopenawa Yanomami, que, aos 15 anos, já era professor em sua comunidade, com um projeto de ensino bilingue.

Davi Kopenawa também tem atuado nas áreas da cultura e da arte. Foi um dos criadores da ópera Amazonas-music theatre in three parts, apresentada em 2010 em Munique e São Paulo. Além de Xapiri e a Última floresta, produziu o filme Urihi haromatima pë: curadores da floresta, com Morzaniel Ɨramari Yanomami. Ele recebeu, em 2017, o Prêmio Itaú Cultural, entre outras distinções, como a Ordem Nacional do Mérito, do Ministério da Cultura, e a incorporação à Academia Brasileira de Ciências.

Fonte: Agência Brasil