Jessé Souza

JESSE SOUZA 11803

Operação em terra indígena e uma data para servir de reflexão

Jessé Souza*

A data de hoje seria para comemorar o Dia do Índio, pelas conquistas alcançadas até aqui pelas populações indígenas brasileiras, apesar de todas as adversidades e crimes que persistem após mais de 500 anos da chegada dos portugueses. Afinal, as vitórias precisam ser comemoradas, como está sendo feito pelo Abril Indígena em nível nacional.

Porém, na véspera da data, surgiu uma operação realizada pelo Exército e Ibama com apoio da Polícia Federal na Comunidade Napoleão, no Município de Normandia, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, neste fim de semana, ação esta que desarticulou frente de garimpo ilegal  explorado sob o comando de índios que defendem a mineração.

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por si só, é fruto de uma grande polêmica e de enfrentamentos não apenas de índios e não-índios, mas de índios favoráveis e índios contrários à demarcação. Na semana passada, foram lembrados os 16 anos de homologação desta terra indígena, cujo questionamento jurídico sobre a legalidade do ato chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que manteve a homologação em 2009.

A polêmica segue até os dias atuais, sempre entre organizações indígenas que são favoráveis e contra não apenas à garantia da homologação, mas também à política indígena de suas organizações e à política indigenista levada a cabo pelos seguidos governos; bem como no aspecto religioso, pois essa luta pela terra ganhou um viés religioso entre católicos versus evangélicos.

A questão do garimpo é mais uma dessas disputas entre favoráveis e contrários. Mas, de fato, a legislação brasileira diz que qualquer garimpo dentro de terras indígenas é ilegal, até que a mineração seja regulamentada pela legislação brasileira. Então, não há mais o que se discutir o garimpo sem falar de legalidade.

Dentro desse contexto há um fato que merece um adendo: durante uma dessas operações contra garimpo ilegal no Napoleão, no ano passado, a PF chegou inclusive a apreender um avião de pequeno porte, que pertencia a um senador por Roraima, o mesmo flagrado com dinheiro na cueca em outra operação policial sobre desvio de recursos para combate ao coronavírus (esse Brasil é surreal!). O político chegou até a gravar um vídeo apoiando o garimpo ilegal.

A operação realizada neste fim de semana na Terra Indígena Raposa Serra do Sol é a sequência de uma operação maior que vem sendo realizada este ano também na Terra Indígena Yanomami, inclusive com a desarticulação de frentes de garimpos no Rio Uraricuera, afluente do Rio Branco que vem sendo agredido fortemente pela ação garimpeira.

Conforme esta coluna já comentou em artigos anteriores, os garimpos ilegais ameaçam nossos principais mananciais de água potável e colocam em risco a integridade dos povos indígenas afetados diretamente pela garimpagem ilegal em suas terras. Houve até denúncia sobre agentes de saúde indígena aplicando vacinas em garimpeiros em troca de pagamento em ouro.

A garimpagem na Raposa Serra do Sol envolve indígenas que já mantém contato secular com a sociedade envolvente, portanto, são comunidades que não só poderiam, como podem, buscar  alternativas de autossustentação, como inclusive algumas organizações contrárias à homologação apresentaram projetos de desenvolvimento.

O curioso é que o mesmo líder indígena, que representava duas organizações indígenas em busca de projetos de autossustentação, gravou um vídeo não apenas contestando a operação que desmontou o garimpo na terra indígena, mas foi enfático em dizer que eles vão continuar garimpando.

Em 2015, esse mesmo líder indígena representava uma organização (Soduirn) e foi até um senador apresentar o projeto de pecuária que se chamava “Duas vacas para cada indígena”. Trata-se do mesmo senador envolvido na investigação da ação ilegal de madeireiros, que culminou na mudança na direção da Polícia Federal na semana passada. Do projeto de gado não se ouviu mais falar.

Com a eleição e posse do presidente Jair Bolsonaro, essa mesma liderança surgiu com um novo projeto, desta vez para desenvolver o agronegócio entre os indígenas, representando outra entidade (Asprovolt). E essa liderança indígena acabou não só sendo recebida pelo novo presidente como esse líder acompanhado de outros dois serviram de pano de fundo para um vídeo gravado por Bolsonaro defendendo o garimpo em terras indígenas.

Depois das seguidas e insistentes declarações do presidente em favor do garimpo, não tardou para o início de um grande movimento de garimpeiros invadindo as terras indígenas em Roraima, inclusive com aval das lideranças daquelas organizações que antes defendiam a pecuária e o agronegócio. O governador de Roraima, Antonio Denarium, chegou a sancionar a “lei do garimpo”, dando mais aval a esta invasão.

Obviamente, se os governos não apoiam projetos de desenvolvimento e surge um presidente que defende garimpo abertamente, não é nenhuma surpresa a explosão de garimpos em terras indígenas. O garimpo com maquinários é impiedoso com o meio ambiente, especialmente os rios que são nossa fonte de abastecimento de água potável, pesca, lazer e turismo.

Mas o garimpo é igualmente impiedoso com os garimpeiros (índios e não índios), os quais têm sua mão de obra explorada similar à escravidão, os quais servem apenas para enriquecer quem patrocina e apoia a garimpagem.

Essas pessoas que se beneficiam são várias: donos de maquinários, donos de aeronaves (não esqueçamos do avião de um senador apreendido), recrutadores e proprietários de comércios que circundam essas frentes, os quais atraem o tráfico de droga e de armas, a prostituição (mulheres indígenas e não indígenas) e o alcoolismo.

Definitivamente, a data de hoje precisa ser usada para uma grande reflexão sobre o garimpo e seus prejuízos às populações indígenas. Por extensão, além do grande perigo para todos que estão nas cidades, especialmente no que diz respeito à crise hídrica que ameaça Roraima e aos reflexos para as atividades ribeirinhas (sociais e econômicas) que dependem desses rios.

Que sigam com as operações nos garimpos. Afinal, garimpo em terras indígenas é ilegal. Mas que os políticos e governos apoiem urgentemente projetos de autossustentação das comunidades indígenas também. Esses projetos existem. É só desengavetá-los. O problema é que não há interesse político nisso.

*Colunista