Opinião

Opiniao 18 11 2019 9311

A Voz da Consciência

*Linoberg Almeida

Uns anos atrás, durante um curso que fiz em Toronto, morei com uma família, os Baksh, que migram da Guiana para o Canadá nos anos sessenta. Num domingo, fomos todos a um casamento, onde serviram um pedaço de tradição inglesa que se dizia poder guardar parte do bolo do casamento para comer um ano após a celebração. Lembrança em massa de ameixa, vinho do porto, cacau, frutas cristalizadas, passas que ia para a casa dos convidados. Era minha primeira vez com tantos negros e indianos juntos.

Minha família materna é negra. E quando nos reunimos falamos sobre subúrbios, subempregos, violência, morte. Vai ver é minha formação em sociologia que atrai o papo. Tem a laje, o pagode, as brincadeiras, mas para além das histórias de fracasso e superação, sinto falta das histórias de persistência que caimbam em 365 dias, e não naquelas que se limitam à consciência de nossa negritude em um dia.

A minha consciência sobre quem eu sou tem um pouco daquele casamento, um pouco dos meus tios e tias na lida por outras histórias a seus filhos que viraram professores, químicos, engenheiros, militares. A nossa consciência precisa mexer nas estruturas para conseguir, de fato, garantir oportunidades mais iguais a todas as pessoas.

O convívio com haitianos aqui e seus hábitos, o cheiro de curry nas ruas de Georgetown, as roupas das mulheres em Adis Abeba e os sons da Cidade do Cabo se misturam aos livros de Amado, a caminhadas em Salvador e União dos Palmares gerando o como eu me vejo no espelho. Isso é a minha consciência individual em formação, uma personalidade própria ligada a crenças e sentimentos.

A consciência coletiva independe do indivíduo. Ela existe antes do indivíduo e influencia esse em sua formação de consciência. É o livro e a apostila da escola que não me vejo. É sua diarista. É a empregada da novela. É a representatividade na mídia e em espaços que a gente possa se enxergar de maneira positiva. E não venha com a frase isolada de Morgan Freeman e a tal consciência humana, enquanto pessoas não tiverem direitos iguais de verdade e sequer forem tratadas como humanas. Você não sabe a sensação de ser (per)seguido em lojas, ser invisível, ou até renegado na entrevista de emprego. 

Quem está lendo pode até pensar em “mimimi”, tá na moda. No entanto, a Lei n.º 10.639, de 2003 que obriga o ensino da história africana brasileira nas escolas anda a passos de tartaruga. Má vontade política de alguns governantes ou racismo estrutural? Você sabe que racismo não é só xingamento, né? 

Num país que não sabe separar facetas do estado laico, as religiões afro-brasileiras caem num silêncio ensurdecedor. Acreditar em algo, sua fé, poder se ver feio ou bonito, capaz de alcançar vitórias tem muito daquilo que você é exposto a, estimulado para, depende do que se fala, ouve e vê. Eu mesmo tive alguns professores negros e adoro saber que posso estimular outras pessoas a acreditarem em si mesmas. 

Se Ganga Zumba, Zumbi, Dandara pouco aparecem, acho incrível como a Revolta do Demerara e a história de Quamina não estão em nossas escolas roraimenses. Tão perto e tão longe de nos vermos como partes de uma mesma Amazônia Caribenha, como bem diz prof. Reginaldo Gomes. A Revolta do Demerara foi uma das maiores nas Américas, envolvendo 13 mil escravos, com histórias de resistência, luta por liberdade, religiosidade a poucos quilômetros da gente.

Ah, e vamos parar de diminuir personagens como a Princesa Isabel para valorizar outros. Tem espaço a todos. Afinal, os dias da Consciência Negra e Proclamação da República são pertinho um do outro. Vai ver faltou consciência a quem pensou o baile da Ilha Fiscal dias antes da queda da monarquia. Ambas as datas hoje tratam da coisa pública, aquilo que diz respeito ao interesse de todos cidadãos e cada um deles. Duas datas e conceitos que precisam de ajustes, mas isso já outra conversa. Sou consciente disso. 

*Professor e Vereador de Boa Vista

Zona cinzenta no tratamento médico Ana Paula Cury*  Fábio Cabar**

A falta de acesso e de infraestrutura aos cuidados médicos em muitos lugares do país desviam a atenção do debate sobre o direito do paciente ter respeitada a sua vontade sobre tratamentos que prolonguem a vida. Cidadãos de todas as classes sociais, integrantes dos três poderes constituídos e, particularmente, profissionais e instituições de saúde precisam compreender a relevância da questão e os efeitos que acarretam em nossa vida pessoal e profissional. No âmbito profissional, o Conselho Federal de Medicina já definiu formalmente como os médicos devem atuar ao tomarem conhecimento de conjunto de desejos, prévia e expressamente, manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Pela Resolução CFM 1995/2012, tais desejos devem ser formalizados num testamento vital, documento que possui um regramento muito particular para a sua elaboração.   Entretanto, a aplicação do testamento vital dentro das instituições hospitalares, privada ou pública, adentra, de fato, numa zona cinzenta, na qual a prática do que está previsto na norma pode imputar riscos aos profissionais envolvidos. Isso acontece em duas frentes. A primeira ocorre porque a aplicação da regra tem limite pré-definido. A vontade expressada pelo paciente não pode estar em desacordo com os preceitos do Código de Ética Médica, os quais encorajam a aplicação dos recursos disponíveis na busca pela cura do paciente. Este não é um conceito subjetivo. Todos os meios para tratamentos num ambiente hospitalar estão a serviço dos pacientes e devem ser usados. A intenção de quem se vale de um testamento vital é de impedir, por exemplo, tratamentos invasivos que sustentam artificialmente a vida. Nestes casos, o médico pode determinar forma de cuidados indesejado pelo paciente e arcar com as consequências dessa atitude, pois está respaldado pelo artigo 24 do código profissional que veda (ao médico) deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade (médica) para limitá-lo.   Na segunda frente, a situação é ainda mais complexa. De acordo com a norma, a vontade do paciente prevalece sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. Mas, ao impor o expresso no testamento vital, o profissional estará sujeito à reação de familiares e a enfrentar procedimentos judiciais para esclarecimento dos fatos. Infelizmente, os dados publicizados pelas comissões de ética dos conselhos de medicina e nas cortes judiciais demonstram volume crescente de ações envolvendo tais situações. E, convenhamos, o fato de enfrentar e defender-se num processo já é visto como um tipo de punição.   Os cuidados meticulosos com os registros médicos, especialmente com a redação de termos de consentimento, são fundamentais para lidar com quaisquer tipos de questionamentos, especialmente judiciais, mas têm-se demonstrado insuficientes para conscientizar os envolvidos na discussão.   A prática evidencia que as pessoas confundem os desejos expressos no testamento vital como autorização para eutanásia ou suicídio assistido, as quais são proibidas no Brasil. Isso traz insegurança a médicos e hospitais e esclarece porque o testamento tem adesão muito baixa em nossa sociedade. Os relatos a partir dos hospitais mostram ain
da que o acionamento de comissões de bioética pouco tem contribuído para aclarar o assunto. Mesmo quando ocorre falta de consenso numa família, e desta com o médico. Pior ainda quando um caso é transferido para os cuidados de conselho médico de uma instituição profissional.   Nas faculdades, este quadro começa a aparecer no horizonte dos estudantes e talvez seja determinante nas escolhas profissionais. Abraçar determinadas especialidades compreende lidar com potencial importante de contencioso jurídico. Aos profissionais do setor cabe se adaptar a este ambiente e suas demandas.   *Sócia-fundadora de CGRC Advogados, mestranda em Direito Médico pela Universidade de Edimburgo e integrante da Comissão de Direito Médico da OAB/SP e da Sociedade Brasileira de Bioética. **Sócio-fundador de CGRC Advogados, médico e advogado, integrante da Comissão de Direito Médico da OAB/SP e presidente da Comissão de Ética Médica do Hospital das Clínicas de São Paulo.      

Bendita crise

Afonso Rodrigues de Oliveira

“Bendita crise que me traz de volta a aventura de viver.” (Mirna Crzich)

Uma vez ouvi alguém dizer que não queria ir para o céu. E seu argumento foi que não gostaria de ficar eternamente deitado debaixo dos pés de uvas, sem poder comer o fruto. Uma tolice, mas que nos leva à reflexão. Como seria a vida se não houvesse as crises? Sem elas nunca aprenderíamos a viver. Não há regresso sem progresso. As duas coisas se chocam para que acordemos para o valor de errar, quando sabemos aprender com os erros. Os sofrimentos com as crises é um atraso. Cada esforço que fazemos para vencer uma crise é um aprendizado. E se é assim, não devemos menosprezar os maus momentos. Eles fazem parte da vida. 

Aqui, na Avenida São Paulo, tem uma loja de artigos eletrônicos. Sempre que passo por ali o comerciante me cumprimenta, e sempre tem algo pra comentar, simpaticamente. Ontem eu ia passando e ele falou alegre: “Finalmente as crises estão maneirando. Estão nos dando um pouco de folga.” Claro que não tive nenhuma intenção de procurar entender o que ele quis dizer. Mas respondi, no pensamento dele. Aplaudi a alegria dele com a saída de alguma crise que, certamente, afastara-se dele. Continuei caminhando e entrei pelo portão do prédio, pensando em como seria a vida daquele cidadão se ele não tivesse encarado as crises que encarou. Será que ele seria o comerciante que é? Sei não.

Mas, vamos maneirar. O comportamento daquele cidadão é um exemplo de como, mesmo sem percebermos, encaramos as crises dentro da nossa evolução racional. Ele estava feliz com a saída da crise, e não magoado nem ofendido com ela. O que já indica maturidade. Porque é assim que avançamos pelas veredas, às vezes ínvias, na busca do nosso aprimoramento. Vamos em frente. Os caminhos estão abertos para os que querem chegar lá. E quando queremos, e sabemos o que queremos, nada pode nos impedir. Não há crise maior do que o poder de vencer. Não há crise que vença a vitória. 

E por falar em vitória, mando um abração para um grande amigo em Boa Vista. Uma amizade, das que nunca morrem: o empresário PERIN. Ontem, casualmente eu ia chegando à varanda, quando ia passando um carro enorme, do tipo transporte de mercadorias. Por incrível que pareça, no carro estava escrito em letras bem graúdas: “PERIN”. Infelizmente não deu mais pra eu ler que tipo de carga o caminhão levava. Será que o Grupo Perin está chegando pela Ilha Comprida? De qualquer forma, um abração quebra-costela para meu amigo Perin. Um exemplo de como os fortes encaram as crises, sem se intimidarem, se amedrontarem nem se aborrecerem com elas. Pense nisso.

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