Opinião

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Ele não sabe que me orientou

Afonso Rodrigues de Oliveira

“A experiência é uma lanterna dependurada nas costas que apenas ilumina o caminho já percorrido”. (Confúcio)

Nesses mais de trinta anos conversando com você, às vezes não me lembro sobre o que falei. Mas se falei, não faz mal. Vamos ao que me ocorreu, falando hoje, pela manhã, com a família. Foi no início dos anos de 1950. Eu namorava a Salete. Ela morava em Copacabana e eu em São Paulo. Eu ia visitá-la a cada quinze dias. Naquele dia eu precisei de orientação para alugar uma pousada, no Rio de Janeiro. Tudo que eu sabia era que a pousada ficava na Rua da Liberdade. Procurei informação sobre onde ficava a Rua.

Naquela época os motoristas de táxis ficavam no estacionamento, sentados em banquinhos e batendo papo. Achei que um motorista de táxi seria a pessoa mais indicada para me informar. Aproximei do grupo. Mas eles falavam sem parar e por isso parei e fiquei esperando que eles parassem. Eles continuaram até que um deles falou irritado:

– Eu não oriento mais. Nunca mais vou orientar ninguém, sobre onde fica qualquer rua. Dia desses uma mulher chegou e me perguntou onde ficava a Rua da Liberdade. Eu expliquei pra ela: a senhora vai em frete, entra na primeira rua e a segunda rua à esquerda é a Rua da Liberdade. Ela olhou pra mim e falou: mas me disseram, ali, que era lá pra esquerda, ali, pra lá, e não em frente. Aí eu falei pra ela: então a senhora vá pra lá e não para a esquerda, e vá em frente. Aí dei as costas e ela se foi, sei lá pra onde.

Outro caso semelhante, mas nem tanto, aconteceu comigo, mas em São Paulo, muitos anos depois do primeiro. Eu já estava casado, e com a dona Salete, e fazia muito tempo, claro. Numa tarde eu estava na Praça do Patriarca, ali onde começa o viaduto do Chá. Uma senhora aproximou-se, cumprimentou-me e perguntou, meio confusa:

– Por favor, onde fica a Rua Barão de Itapetininga?

Sorri pra ela e respondi, apontando para o viaduto:

– A senhora atravessa a Praça, pega o viaduto e segue. No final do viaduto começa a Rua Barão de Itapetininga.

Aí a mulher arregalou os olhos e falou, agora sim, confusa:

– Mas agora mesmo, alguém me disse que era para ali, lá para a direita…

Sem me aborrecer, respondi calmamente:

– Então cabe à senhora decidir em quem confiar, se vai entrar no viaduto, ou seguir para a direita.

Ela balançou a cabeça e resolveu atravessar a Praça e pegar o viaduto. No meu estilo, permaneci olhando o caminhar da mulher. E meu objetivo era ver se percebia se ela caminhava confiante. Mas isso não importa. O que importa mesmo é que você se sinta bem em ter feito o bem, mesmo o mais simples. Pense nisso.

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Coração desperto

Marco Antonio Spinelli*

 

Einstein uma vez foi questionado sobre qual seria a sua pergunta mais importante. A sua resposta foi, como sempre, desconcertante: “O Universo é amigável?”. Parece uma pergunta boba, mas sua implicação é profunda até para o trabalho de um psiquiatra. A resposta que a Ciência diria é que o Universo não é hostil nem amigável, é uma somatória de leis imparciais e sem intenção, que selecionam os mais aptos e eliminam os mais fracos. É um universo regido por probabilidades sem consciência, sem proteção. Quando Einstein levanta a possibilidade de um Universo amigável, está questionando a existência ou não de uma ordem profunda, que ajuda a nossa evolução, como uma Mão Invisível, um anjo da guarda, uma Ordem Superior. Se alguém pensou em Deus, está na direção da pergunta do físico alemão.

O que eu diria para Einstein é que a expectativa de um Universo amigável ou devorador vai gerar muito da nossa experiência nele. Nossa expectativa é marcada por experiências que nos são transmitidas, pelos pais, pela família, pela cultura, pelos eventos que marcam e determinam nossa visão do mundo. No momento em que estou escrevendo esse texto, chega uma notícia no celular de um homem que abriu fogo contra pessoas num supermercado americano, na cidade de Bufallo, New York. Mais um “mass shooter”, um atirador em massa, explodindo seu ódio contra pessoas indefesas e desconhecidas. Ele se descreveu como um “supremacista branco”. Para o atirador e as vítimas e seus familiares vai ser difícil falar de um Universo amigável, ou protetor. O atirador em massa é geralmente uma pessoa isolada, com pouco ou nenhuma estrutura familiar ou inserção social, que se filia a grupos de ódio e explode seu isolamento atirando em inimigos imaginários. Viver ou não no Inferno depende de como alguém se relaciona consigo e com o Outro. Tem mais gente vivendo na selva do ódio que na proteção do afeto.

Há uma história bonita que eu ouvi numa meditação de Tara Brach, maravilhosa terapeuta e mestra budista (para quem entender o Inglês, há achados preciosos dela no Youtube), que eu vou resumir aqui: “Em tempos muito antigos, havia um mosteiro budista que tinha sido outrora muito próspero, mas que agora experimentava uma profunda decadência. Os monges e as monjas não conseguiam mais cuidar dos outros, e isso se refletia numa horta em que as plantas iam muito mal, morriam e não pareciam ter salvação. Os líderes estavam ficando muito velhos e não tinham força para mudar o ambiente corporativo do Mosteiro.

Um abade, preocupado com a situação, foi falar com uma senhora, uma Velha Sábia conhecida em toda a região por sua sabedoria e conhecimento. Como acontece em muitas situações de aflição, o monge queria uma espécie de tutorial com estratégias para melhorar o ambiente de trabalho e salvar o Mosteiro. A sábia em questão, sendo sábia, não deu a ele nenhuma fórmula pronta. Apenas respondeu
que não sabia como ajudar os monges e monjas naquela situação, mas que sabia que naquele lugar havia um Bodhisattva.

Bodhisattva é um ser iluminado e desperto, o que significa que tem um Coração Desperto, capaz de promover e estimular a iluminação dos seres. O abade voltou ao Mosteiro e dividiu com os monges o que disse a Velha Sábia. Nos dias que se seguiram começou a acontecer mudanças profundas nas pessoas, que passaram a se tratar com respeito e reverência, imaginando que a pessoa na sua frente poderia ser o Ser Iluminado. O Mosteiro voltou a prosperar, as plantas e as pessoas foram cuidadas e a comunidade beneficiada. Essa Sábia poderia muito bem responder para o Einstein que não sabia se o Universo é ou não amigável, mas que havia um Bodhisattva dentro dele. E que ele pode ter o Coração Desperto que muda o mundo.

Podemos ver nas pessoas o que elas possuem de pior, podemos pensar no ser humano a partir da estupidez, da ignorância ou da loucura que faz um cidadão disparar contra pessoas indefesas no supermercado. Ou podemos ter a esperança em despertar a natureza profunda das pessoas, que é de Bondade Amorosa.

A mágica dessa parábola é que, quando tratamos as pessoas como se elas fossem esse Ser Iluminado, tudo cresce e a vida volta a prosperar. Quando tratamos o Outro como lixo, ele pode abrir fogo entre as gôndolas do supermercado.

 

**Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”