A complexidade da saúde indígena e a tentativa de desviar o foco dos verdadeiros culpados
Jessé Souza*
A ausência de uma política ambiental, o apoio declarado ao garimpo e a tentativa de anular completamente a política indigenista do governo, nos últimos quatro anos, fizeram com que forças poderosas se realinhassem na Amazônia com muita sede não apenas nos recursos naturais e minerais da Amazônia, mas também nos recursos públicos destinados especialmente para a saúde indígena. Se antes esses esquemas já vinham ativos, agora só se fortaleceram.
A operação da Polícia Federal deflagrada em Roraima, esta semana, mostrou uma pequena ponta do que ficou oculto por um certo período na saúde indígena, setor que foi estrategicamente entregue pelo governo nas mãos de políticos locais anti-indígenas, mas não por acaso. Na lógica, não havia qualquer sentido colocar a saúde indígena nas mãos dos maiores detratores dos povos indígenas.
Mas os fatos indicam que, além de serem alinhados com os propósitos da política (ou falta dela) do atual governo, eles também defendem os interesses explicitamente dos empresários do garimpo ilegal, das madeireiras, dos grileiros, dos latifundiários e dos grandes produtores. Então, são as pessoas certas no lugar certo para seguir com o projeto maior da bancada ruralista.
Historicamente, a saúde indígena foi uma galinha de ovos de ouro de grandes esquemas, por isso o setor vem sendo colocado nas mãos de políticos que, publicamente, são contra os direitos indígenas, mas brigam em Brasília para controlar os Distritos de Saúde Indígena sob o comando da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Esses distritos têm recursos milionários, os quais bancam não apenas remédios, profissionais, equipamentos e veículos, mas principalmente recursos ao pagamento de voos para áreas remotas, onde apenas pequenas aeronaves conseguem chegar. E aí está outra grande questão, pois, além de movimentarem grande parte dos recursos da saúde indígena, os voos acabam servindo a um desvio de finalidade.
O que a PF investiga nesta operação, apontando indícios de desvio de remédios para crianças indígenas, é um problema menor entre os grandes esquemas. Outras investigações apontam que aviões que fazem voos para a saúde indígena também dariam apoio ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Seria algo como ele estarem recebendo recursos milionários da saúde indígena para que atuem paralelamente com o garimpo ilegal.
Então, desde há muito tempo os políticos brigam para ter o controle dos órgãos que comandam a saúde indígena em Roraima, pois, ainda que haja cortes de verbas, como ocorreu no atual governo, os recursos ainda são milionários devido à especificidade da saúde indígena, com suas grandes distâncias para locomoção de profissionais de saúde, medicamentos e remoção de pacientes para a cidade.
Quando a PF deflagrou a operação que apura desvio de recursos de medicamentos, logo surgiram vozes para desviar o verdadeiro foco da atenção, que são os políticos e seus esquemas, com alguns querendo jogar a responsabilidade para as próprias lideranças indígenas, as Organizações Não Governamentais (ONGs) e a única parlamentar indígena brasileira no Congresso, a deputada federal Joenia Wapichana (REDE), que ficou sozinha lutando contra o garimpo ilegal, os projetos anti-indígenas do Governo Federal e do Governo do Estado, que chegou até sancionar a “lei do garimpo”.
Enquanto isso, os verdadeiros culpados saem incólumes inclusive das críticas seletivas em setores da imprensa local, onde um candidato empresário de garimpo chegou a comprar jornalistas não apenas para apoiar sua candidatura nas eleições deste ano, como também para fazer matérias explicitamente e escandalosamente a favor do garimpo ilegal, que se beneficia dos esquemas de aeronaves que atendem a saúde indígena, mas desviam suas rotas para apoiar o garimpo ilegal.
Esse empresário é citado no esquema de voos duplos para a saúde indígena e garimpos ilegais. Até 2021, o Governo Federal pagou R$ 124 milhões a empresas que fazem uso de helicópteros suspeitos de garantir a logística em garimpos ilegais em terra indígena na Amazônia, conforme as investigações. Uma operação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), com a participação da PF, Ibama e Ministério da Justiça, no ano passado, apreendeu ou interditou em Roraima 66 aeronaves suspeitas de atuação em mineração na Terra Yanomami.
Há um esquema bem estruturado que ultrapassa o entendimento da sociedade e das críticas seletivas de boa parte da sociedade. Vale ressaltar que, desde o ano de 2020, vem circulando denúncias sobre profissionais de saúde que vendiam remédios e vacinas contra Covid-19 a peso de ouro com os garimpeiros, além de outros que abandonaram a profissão para abrir comércio nas frentes de garimpos. Isso apenas para demonstrar a complexidade do problema.
A grave situação da saúde indígena só vai mudar quando todo esse grande esquema for desmontando. Não custa lembrar que a situação é tão surreal que, em tempos não muitos distantes, o empresário de aviação Chico da Meta foi assassinado por causa da disputa de uma licitação para voos a terras indígenas. E a mudança pode começar quando a sociedade local parar de culpar as pessoas erradas pelo processo de genocídio do povo Yanomami. Já será um bom começo.
*Colunista