A degradação da sociedade e a ausência de políticas públicas básicas
Jessé Souza*
“Do linchamento ao canibalismo” foi o título do artigo que esta Coluna publicou em 15.08.2017, portanto, há quase seis anos, a respeito de populares nos bairros mais pobres de Boa Vista linchando ou espancando em via pública suspeitos de roubos e furtos. Naquele momento já estava sendo construída uma índole baseada no ódio e no preconceito aos venezuelanos que estavam chegando em massa.
Mas não só isso. A insegurança e a descrença na política, na polícia e na Justiça são fatores decisivos para que pobres começassem a trucidar pobres, em um canibalismo social, especialmente se for um estrangeiro envolvido em furtos. A cena que mais impactou, nesse fim de semana, foi a de um jovem venezuelano violentamente espancado e com uma mão decepada por ter sido acusado do roubo de celular numa residência. E a de outro rapaz acusado de furto desfalecido ao chão após fortes agressões.
Fica evidente a ausência do governo em políticas públicas, principalmente diante da baixa qualidade da Segurança Pública, que não consegue dar as respostas necessárias à crescente violência do crime organizado, que se infiltrou no garimpo ilegal e se aproveita da imigração em massa. E com a precariedade da política educacional pós-pandemia, em que muitas escolas sequer reabriram as portas, completando o cenário de desalento e degradação da sociedade.
Em outra ponta, a política partidária não traz nenhuma esperança de que algo possa mudar, mediante a observância dos endêmicos casos de corrupção, favorecimentos e do desgoverno para atacar os problemas enfrentados pelos mais pobres. Os políticos estão sempre tratando de seus interesses ou de olho nas próximas eleições, conforme é possível observar no desenrolar dos fatos nas últimas semanas.
Para reforçar o cenário, com uma educação pública deficitária, as pessoas estão perdendo a capacidade de tolerar, respeitar e seguir as leis que regem a sociedade. Há uma degradação moral que se soma a tudo isso, criando cenas de terror que estão normalizadas pela política do ódio que foi fomentado nos últimos anos, em que uma das facetas desse discurso foi a fixação da frase “bandido bom é bandido morto”.
Foi assim que retroagimos séculos atrás, passando a adotar um comportamento de repressão vingativa, ressuscitando a Lei do Talião, do olho por olho, dente por dente, de trucidar principalmente aquele que aprendemos a odiar, os estrangeiros pobres envolvidos seja qual for o delito ou o crime.
Tanto isso é verdade é que, em outro caso de grande repercussão no fim de semana, em que um rapaz matou um senhor bêbado após empurrá-lo de costas contra o chão, no interior do Estado, ele não foi alvo da ira dos demais presentes ao fato. Caso fosse um venezuelano, certamente o acusado teria sido espancado até a morte, como reza a cartilha que está em prática nos últimos tempos em Roraima.
Se não fosse um canibalismo social de pobre devorando pobre, já teríamos visto políticos acusados de corrupção sendo atacados nos bairros da Capital ou nas comunidades do interior. Mas isso é impensável, mesmo que os ladrões de colarinho branco roubem muito mais e prejudiquem toda a coletividade ao devorarem recursos destinados a setores imprescindíveis, como saúde, educação, estradas e segurança pública.
Ou seja, quando se trata de um rico o comportamento é outro: o mesmo que trucida um ladrão de celular, em via pública, decepando a mão de suas vítimas, muitas vezes é o mesmo que reverencia o político corrupto e o reelege a cada ano eleitoral, correndo atrás dele à primeira cesta básica e/ou saco de cimento oferecidos em período eleitoral. Estão nos transformando na pior espécie de seres humanos, em cidadãos canibais, pobres escalpeladores de pobres.
*Colunista
** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV