O feriadão prolongado foi marcado por ações do Governo de Roraima que colocou milhares de crianças na fila da distribuição de brinquedos nos bairros de Boa Vista, no dia 12, encerrando com distribuição de pipas (papagaios) no Parque Anauá. O próprio governador Antonio Denarium fez questão de ir pessoalmente participar das ações, com fartos vídeos e fotos compartilhados em suas redes sociais.
A cena lembrou muito bem um passado não muito distante em que o então governador Ottomar Pinto, a partir da década de 1980, colocava a população na fila pare receber brinquedos das próprias mãos dele. Foi o tempo em que o assistencialismo passou a ser uma política de governo. O povo fazia fila ao redor do Palácio do Governo para receber peixe, buchada de boi e frango (galeto).
Um fato curioso é que, na década de 1980, os migrantes eram os nordestinos que o próprio Ottomar trazia às levas para o então Território Federal ou que viam em busca do sonho de ficar rico no garimpo. Hoje, os migrantes são venezuelanos que fogem da miséria em seu país. Naquele tempo, não existiam semáforos na Capital, senão teríamos o mesmo cenário de hoje, com crianças pedindo esmola nos cruzamentos da cidade. Na década de 1980, as crianças pediam na feira e na porta de supermercados.
Quem anda por Boa Vista, especialmente pelo entorno da Rodoviária, logo percebe que estamos diante de uma situação crítica por causa da migração em massa de venezuelanos, cuja cena impacta mais ainda porque são famílias inteiras com crianças dormindo ao relento nas calçadas, meios-fios, praças e marquises das lojas. O problema é ignorando, pois os políticos fingem que não é com eles.
A infância está sob grandes riscos, mesmo que essas crianças sejam de nacionalidade venezuelana. E quem foi para o festival de pipas no Parque Anauá pôde ter uma noção da infância roraimense, a qual foi colocada na fila dos brinquedos enquanto o mesmo governo que distribui presentes não tem um programa voltado para as crianças, muito menos para a Primeira Infância, que abrange a faixa etária de zero a 6 anos de idade, que é o período de vida mais importante e decisivo para a sua formação como cidadãos saudáveis.
Que distribuam presentes! Que homenageiem as crianças com festas! Mas é obrigação dos gestores públicos, em todos os níveis de governo, se preocuparem com a Primeira Infância. Inclusive, em 11 de julho deste ano, foi sancionada a Lei 14.617/2023, que institui agosto como o mês da conscientização da primeira infância, dedicado às ações sobre a importância da atenção integral às gestantes e às crianças de até 6 anos de idade e a suas famílias.
A referia lei afirma que os governos estaduais e municipais deverão fomentar ações integradas visando ampliar o conhecimento da primeira infância, ofertar atendimento integral e multiprofissional com ênfase nas ações de promoção de vínculos, educação continuada, desenvolvimento de políticas, programas, ações e atividades para garantir prioridade e efetivação dos direitos ao público da primeira infância.
Por aqui, até agora, apenas o Município de Boa Vista tem uma política pública instituída há 10 anos voltada para a Primeira Infância, executada por meio do Programa Família que Acolhe (FQA). Hoje 7% do orçamento municipal é destinado para a Primeira Infância, o que representa R$166 milhões por ano em investimento. E isso para um orçamento anual de R$1,9 bilhão.
Recentemente, o Tribunal de Contas de Roraima (TCE-RR) criou o Grupo de Trabalho Pela Primeira Infância, que tem a finalidade de induzir políticas públicas e potencializar seu alcance, a partir do acompanhamento da aplicação de recursos públicos destinados diretamente à primeira infância ou com impacto sobre ela. Então, já passou da hora de nossas autoridades abrirem os olhos para esta realidade.
Antes de colocar crianças na fila do brinquedo e do papagaio, em uma reencarnação de uma política assistencialista do passado, inclusive distribuindo peixe na Semana Santa, o Governo de Roraima tem o dever de adotar uma política voltada para a Primeira Infância. Tudo depende de vontade política, porque todos sabemos que recursos existem e que, muitas vezes, falta apenas de uma gestão comprometida – para usar um argumento conhecido de todos nas últimas duas eleições.
*Colunista