JESSÉ SOUZA

A redação do Enem e a discussão aberta sobre o trabalho de cuidado

Trabaho doméstico é uma das atividades desempenhada quase excusivamente por mulheres (Foto: Divulgação)

Quem já ficou hospitalizado algum dia de sua vida pôde presenciar uma cena que não chama muita a atenção da sociedade: quase a totalidade dos pacientes, especialmente no caso de idosos e crianças, estão acompanhados por mulheres. Esse cuidado que as mulheres desempenham em favor de terceiros é o que pode ser chamado de um tipo de “trabalho de cuidado”, que foi tema da redação da prova do Enem 2023, aplicada neste domingo.

Dentro de uma sociedade explicitamente machista, a discussão sobre o assunto acaba sendo invisibilizado.  E o tema da redação do Enem (“Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”) chama o assunto para a discussão e provoca a sociedade para que deixe de fingir sobre a falsa igualdade das mulheres no mercado de trabalho e no próprio convívio social.  

A escola tem um papel importante dentro do contexto de tirar o tema da invisibilidade. Há um exemplo clássico de como o trabalho de cuidado é tratado desde tenra idade: quando uma criança chega no primeiro dia de aula na escola e a professora pergunta sobre a profissão dos pais. “Minha mãe não faz nada. Ela só fica em casa”, responde a criança. E isso depois de a mulher ter acordado cedo, dado banho no filho, o vestido e arrumado sua mochila, para depois fazer o café da manhã para a família.

O Enem cumpriu o seu papel de provocar um debate nacional e, agora, cabe aos demais setores da sociedade continuar com a discussão, a começar pela escola, onde as crianças precisam enxergar o trabalho de cuidado desenvolvido especialmente pelas mães e avós como uma atividade importante, mas muitas vezes ignorada dentro da própria família, especialmente naquelas onde os homens se colocam como os provedores de tudo.

Não se trata de um desafio simples, pois historicamente o trabalho de cuidado dispensado às mulheres foi tratado não apenas pelo viés machista, mas principalmente como uma atividade sem qualquer importância, muitas vezes executada como mão de obra barata e, algumas vezes, até um trabalho análogo ao de escravo, de acordo com denúncias que vez por outra saem na imprensa brasileira.

Além disso, são recorrentes casos de meninas de famílias pobres serem entregues para uma família rica “criar”, sob a alegação de que irá estudar, mas acabam sendo escravizadas. Em Roraima, isso ocorre especialmente com crianças indígenas, onde os “padrinhos” as levam para a cidade, onde são colocadas no serviço doméstico ou no cuidado de crianças sem qualquer remuneração ou reconhecimento.

Esta realidade significa que ainda há muito o que se discutir não apenas sobre o trabalho de cuidado desempenhado por mulheres, como propôs o Enem, mas também sobre os abusos cometidos contra o sexo feminino historicamente e que são silenciados e muitas vezes normalizado sob essa mesma fachada que invisibiliza o papel da mulher numa sociedade machista, onde muitas morrem só pelo fato de serem mulheres.  

*Colunista

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