Das mãos de sonhadores para a História: parabéns, Folha!
Jessé Souza*
Estava no começo da minha carreira na Folha de Boa Vista em 1996. Eu havia estreado na imprensa em 1991, no extinto O Diário, um jornal explicitamente chapa-branca que defendia o governo do já falecido Ottomar Pinto, recém-eleito pelo voto direto como primeiro governador após a criação do Estado de Roraima, em 1988. Friso isto para explicar que não cheguei à Folha como “foca” – termo usado para designar um repórter iniciante.
Era por volta das 17h de 20 de outubro daquele ano, e eu estava me preparando para ir embora após cumprir minhas três pautas do dia. Fui abordado na janela de vidro do corredor do primeiro andar, quando estava olhando para a rua, antes de ir embora, onde recebi uma pauta urgente e em tom de mistério do editor-chefe Carvílio Pires. Faz 26 anos, mas me lembro como se fosse hoje.
No dia anterior, o jornal foi chamado pela diretora do Hospital Materno Infantil Nossa de Nazareth para cobrir um feito: o parto de trigêmeas em perfeitas condições de saúde. Porém, no mesmo dia em que jornal havia “macheteado” o feito daquele parto, uma das gêmeas havia morrido misteriosamente dentro do berçário da maternidade. Minha missão era confirmar a trágica notícia dessa morte antes que o expediente terminasse no governo, às 18h.
Acompanhado do fotógrafo Nonato Sousa, que acabou fazendo uma longa parceria que iria incomodar o poder público por um bom período, fomos à maternidade. Obviamente que a maternidade rapidamente fechou as portas para a imprensa e impôs um misterioso silêncio dos funcionários. Mas, de repente, não mais que de repente, me veio um lampejo: era possível que soubéssemos da morte na empresa funerária.
Chegamos com uma estratégia montada rapidamente dentro do carro da reportagem durante o trajeto. Iríamos dizer que se tratava de um trabalho para o Curso de Jornalismo da Universidade Federal (UFRR). Afinal, eu realmente era da primeira turma do recém-criado curso e não haveria problema em apresentar minha carteira de estudante. E assim foi.
Já passava das 17h30, perto de o expediente encerrar. Mas o trabalho das funcionárias não, pois havia uma pilha de atestado de óbitos em cima da mesa que estavam sendo confeccionados e mais outros que estavam chegando, indicando que aquelas duas moças provavelmente iriam prolongar o seu expediente naquele dia.
As moças estavam tão atarefadas que nem desconfiaram do meu nervosismo por estar usando um estratagema. Aleguei que estava pesquisando sobre mortalidade infantil e que queria informações sobre mortes. Uma das moças, sem querer muita conversa, apontou uma pilha de certidão de óbitos em cima da mesa e disse: “Aí estão as mortes desse mês só de bebês. Você mesmo pode conferir”.
Minhas mãos tremiam. Eu jurava que podia ouvir minha respiração e as batidas do coração diante da inocência da moça em deixar eu manipular os documentos tão importantes. Contei 21 atestados de óbitos de recém-nascidos em 20 dias de outubro, todos por septicemia. Para tentar disfarçar e montar um falso diálogo, perguntei a elas o que significava a palavra “septicemia” que eu estava lendo. Explicaram que era infecção generalizada e que todos os bebês estavam morrendo daquela forma.
Eu sentia que estava ali a matéria da minha vida. O jornal do outro dia trouxe a manchete de 21 bebês mortos no berçário da maternidade em 20 dias. Uma bomba. A diretora da maternidade convocou uma coletiva de imprensa para falar daquela notícia bombástica, logo pela manhã. Com uma sala lotada de repórteres de todas as emissoras e jornais, ela começou a entrevista: “Quero dizer a vocês que não é verdade que morreram 21 bebês…”.
Todos os demais repórteres logo me olharam como se eu estivesse cometido a maior “barrigada” que iria acabar com minha carreira ali, naquele momento. Senti meu corpo diminuir na cadeira e minha cabeça se enfiando no corpo. E a diretora prosseguiu após a pausa que me pareceu uma eternidade, a ponto de eu ter conseguido imaginar a minha cabeça degolada no meio da Redação do jornal: “Na verdade, morreram 22 bebês em 20 dias…”
E houve um burburinho tão intenso dos repórteres que, para mim, pareciam borboletas no estômago e fogos de artifícios dentro daquela sala apertada. Ninguém mais me olhava. Também podia ouvir sinos de igreja que tocavam aos domingos de manhã na minha infância. Talvez eu tivesse errado na contagem dos atestados de óbitos, ou talvez a moça que me atendeu ainda estivesse confeccionando o último daquele dia…
A diretora da maternidade se demitiu no dia seguinte. A partir dali, o “furo” jornalístico não só tornou-se o maior escândalo da saúde pública roraimense, atraindo correspondentes dos principais jornais brasileiros para Roraima, como também possibilitou que a grande imprensa descobrisse que centenas bebês estavam morrendo de infecção hospitalar em outras maternidades brasileiras. Não foi apenas “a” matéria da minha vida, mas também mais um passo para a Folha se consolidar conforme dizia seu slogan da capa: “Um Jornal Necessário”.
E foi assim que começou minha trajetória de 20 anos na Folha, encerrada depois que meu corpo estava atrofiando e com uma mente que emitia sinais de querer se fechar. Mas foram duas décadas intensas de uma liberdade viajada para não me deixar levar por atos afoitos, mas permitindo total independência nas matérias investigativas e que denunciavam os desmandos dos governos da época.
Fui preparado para assumir o cargo de editor-chefe, e fiquei no comando do jornal por mais de uma década. Porém, já escrevia na página de Opinião esporadicamente desde 1992 e, efetivamente, a partir de 1994 como colaborador fixo. Então, são três décadas de parceria e cumplicidade, dos quais foram 20 anos de carteira assinada.
Hoje, 21 de outubro de 2022, a Folha completa 39 anos de circulação ininterrupta, sobrevivendo a todos os percalços, o mais recente deles o fim da edição impressa decretada pela pandemia. Eu temia que o fim do papel se concretizasse nas minhas mãos. E isso acabou não ocorrendo. Eu já havia presenciado a transição da tipografia para a rotativa plana, da fotografia revelada em papel para a digital, da máquina de datilografia para o computador, do telefax para o e-mail e do anal
ógico para o virtual…
Uma nova geração chegou, junto com o novo tempo do mundo virtual, mas a responsabilidade dos jornalistas é a mesma e a finalidade do jornal idem, que é manter um jornalismo independente, realmente necessário para a construção de uma sociedade melhor. Embora os haters (odiadores) sempre terem existido, sobrevivi com cicatrizes, mas orgulhoso de toda uma trajetória.
Cresci junto com a Folha, mas decidi me despedir, seguindo agora apenas como colunista diário. Mas ainda sinto as mesmas borboletas no estômago diante do texto de um artigo com um tema que eu considero importante, com o mesmo espírito juvenil de quando eu elaborava minhas reportagens que iriam incomodar alguém ou alguns no outro dia. E esse imprescindível jornal, que está na História de Roraima, segue como um grande instrumento indispensável para a consolidação de uma sociedade melhor para nós e para os nossos descentes.
Parabéns, Folha! Posso dizer que minha trajetória profissional só tem sentido quando compartilhada toda essa oportunidade que o jornal me proporcionou. A missão continua… e todos que compõem o quadro profissional do Grupo Folha precisam sentir esse orgulho no peito, pois foi assim que esse jornal foi construído desde o princípio, a partir das mãos de sonhadores.
*Colunista