Entre o sonhador e a nova realidade em que se transformou o garimpo
Jessé Souza*
Assim como a pobreza não autoriza ninguém a ser bandido, o fim do garimpo não empurra pais de famílias trabalhadores para o mundo do crime. O verdadeiro garimpeiro, além de trabalhador, é um sonhador que sempre busca novas oportunidades assim que um garimpo fecha ou quando determinada área explorada “cega”, que no linguajar garimpeiro significa que aquele garimpo se esgotou para exploração. Ou vai sobreviver de “bicos” nos centros urbanos, geralmente trabalhos braçais.
O garimpeiro tradicional, aquele de bateia e suruca nas mãos, é um trabalhador em extinção desde que os pequenos motores, os quais substituíram a exploração manual, passaram a ser trocados por bombas extratoras cada vez mais potentes e grandes dragas que exigem alto poder aquisitivo, o que transformou o garimpeiro pobre em mão de obra barata, análoga à escravidão. É nessa mão de obras altamente explorada que se tornou o garimpeiro da atualidade.
Enquanto o garimpeiro braçal ainda sonha em ficar rico de alguma forma, cada vez mais se torna refém dos novos capatazes dos grandes financiadores do garimpo ilegal, entre eles facções criminosas que se apossaram de áreas na Terra Yanomami. O garimpo ilegal, por atuar à margem da lei, acaba gerando a corrupção e a violência, financiando atividades criminosas e conflitos armados, a exemplo das 14 mortes registradas naquela região.
O esvaziamento do garimpo em terra indígena não está transformando garimpeiros trabalhadores em bandidos. Absolutamente não. Enquanto pais de famílias buscam novos garimpos ou passam a viver de trabalhos informais, os bandidos que se escondem em áreas do garimpo ou que atuam em grupos criminosos continuam na bandidagem ao saírem do garimpo ilegal, cujas ações são facilitadas pela fácil circulação de armas, drogas e outras ilegalidades que se originam exatamente do garimpo ilegal.
É este cenário que estamos vendo em Boa Vista, com a criminalidade avançando, pois armas e drogas que alimentavam o garimpo ilegal acabam se concentrando nos centros urbanos, onde territórios são disputados com facções rivais, enquanto na terra indígena o crime organizado tenta resistir de qualquer forma, desafiando a polícia e as leis.
Desta vez, eles contam com uma grande vantagem, pois possuem armamento pesado em um território hostil que eles aprenderam a dominar cooptando indígenas, arregimentando foragidos e subornando policiais, autoridades e empresários financiadores. Enquanto parte segue na guerrilha urbana disputando território, onde é mais fácil a polícia atuar, outra resiste no garimpo ilegal, onde existe a ausência completa do poder público, cujas operações de desintrução não podem ser mantidas de forma ostensiva e permanente. E os bandidos sabem disso.
Então, o garimpo em terra indígena chegou a um momento crucial, pois não se trata mais de se posicionar a favor de pais de famílias trabalhadores. Agora é o poder do Estado lutando contra o crime organizado e o poderio de grandes empresários do garimpo, que enriqueceram ilegalmente e que financiam candidaturas na política partidária literalmente a peso de ouro. A criminalidade é um dos reflexos apenas, cuja geografia fronteiriça só contribui para o atual cenário.
*Colunista
** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV