O garimpo ilegal prospera enquanto os Yanomami caem em desgraça
Jessé Souza*
O conflito armado dentro da Terra Yanomami entre os indígenas e garimpeiros, no Rio Uraricoera, nesta segunda-feira, representa mais um capítulo do antigo descaso do governo brasileiro com relação ao garimpo ilegal, o qual é incentivado por políticos em suas falas cheias de sofismas justamente para confundir.
Além de ser uma atividade ilegal, a garimpagem em terras indígenas provoca um grave problema na organização social e cultural das comunidades tradicionais onde os garimpeiros atuam. Os indígenas não apenas se envolvem como passam a viver a realidade das atividades ilegais, seja aderindo aos esquemas, o que gera os conflitos, ou sendo vítimas da nova realidade.
Há dois meses, circulou um vídeo, gravado por um garimpeiro, que mostrava índios Yanomami promovendo entre si uma briga generalizada dentro de uma dessas frentes de garimpo, que acabam se tornando uma currutela onde tudo se vende, principalmente bebidas alcóolicas e armas, que por sua vez é a base de qualquer estopim para um conflito. A desagregação social e cultural começa por aí.
O povo Yanomami tem pouco tempo de contato com a sociedade envolvente e não está preparado para essa mudança radical de realidade, especialmente quando se trata de uma atividade ilegal que atrai outras ilícitas, além da prostituição, do comércio baseado na ganância provocada pelo ouro e pela distância dos centros urbanos.
A maioria dos Yanomami não está em conluio com os garimpeiros nas atividades ilegais nem ligados a essa relação comercial baseada na exploração por ganância ou pelas chantagens. A maioria está no meio desse fogo cruzado, sofrendo as duras consequências que implicam em doenças, fome, vulnerabilidade, perda de sua cultura e todos os demais problemas advindos a partir daí.
As comunidades são as maiores vítimas. Alguns indígenas acabam sendo cooptados e até incentivados a serem os mercadores da ilegalidade, inclusive cobrando pedágio para que as embarcações dos garimpeiros passem pelo rio, sob ameaças e chantagens, insuflando uma relação que é desigual porque os garimpeiros têm nos indígenas um ser inferior, muitas vezes sequer considerados gente.
É só ver as postagens de garimpeiros nas redes sociais, a cada operação policial ou de notícias de mais um conflito, para perceber que os indígenas são tratados como seres desprezíveis e chamados até de “animais”. E são atacados por quem também é vítima dos verdadeiros empresários que bancam o garimpo ilegal, restando à grande parcela desses trabalhadores a exploração, um trabalho duro e indigno, além do desemprego na cidade.
Desagregadas e destroçados pela bebida alcóolica, algumas famílias indígenas caminham para a cidade, especialmente o Município de Mucajaí, que abriga parte da Terra Yanomami. Homens, mulheres e crianças passam a viver da mendicância, cuja principal atividade é arrecadar dinheiro para comprar cachaça.
Existem várias fotos e vídeos de indígenas dormindo ao relento no meio-fio, nas calçadas de postos de combustíveis, nas favelas montadas na beira da estrada. Ou provocando confusões entre eles, cujas mulheres se envolvem nas brigas segurando seus bebês. As crianças são as que mais sofrem, porque ficam desnutridas e submetidas às piores condições de quem vive na rua.
O garimpo ilegal é um problema complexo, que faz vítimas índios e não índios, com a grande diferença de que os indígenas são a parte mais indefesa devido a sua cultura e, além disso, por serem considerados intrusos dentro de suas próprias terras protegidas pela lei maior do País.
E os seguidos governos agem com omissão e sequer as autoridades responsáveis pela proteção dos povos indígenas conseguem se organizar para combater a garimpagem ilegal, a não ser as operações esporádicas e superficiais que ameniza, mas não soluciona.
O recente conflito na terra indígena apenas revela que as recentes operações realizadas no mês passado, pelo Exército com apoio da Polícia Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), não minou o grande negócio ilegal nas frentes de garimpo. O garimpo é mantido por um grande esquema que consegue reerguer imediatamente as baixas sofridas nas operações policiais.
Enquanto isso, o governo brasileiro se desmobiliza e, sem que haja uma frente de combate efetiva e organizada, as atividades ilícitas seguem imediatamente após o fim das operações. Combater garimpo ilegal não é nenhum favor aos povos indígenas ou a ambientalistas. Trata-se de cumprir a lei. A omissão também é um crime.
O Brasil não pode ser vencido pela ilegalidade dos empresários que bancam o garimpo. A garimpagem precisa ser extirpada porque ameaça não apenas à vida de indígenas e à dignidade dos trabalhadores não índios submetidos à intensa exploração, mas também ao ecossistema da Amazônia brasileira. Todos estamos em risco para que um pequeno grupo fique rico à custa da vida das pessoas.
*Colunista