O caso Romano dos Anjos, a vida em risco e um busto arrancado numa impunidade histórica
Jessé Souza*
O caso do sequestro, tortura e ameaça contra o jornalista Romano dos Anjos e sua família, que impactou a sociedade, também provocou uma grande surpresa não só para quem trabalha na imprensa, mas para quem lida no dia a dia da política roraimense. Foi um impacto saber que os acusados do crime são policiais militares que trabalhavam na Assembleia Legislativa de Roraima.
Pelo menos um deles, conheci jogando futebol em nosso time de várzea da periferia, no final da década de 1980, disputando partidas no Campo do Roraima no final da adolescência. Outros envolvidos eu também conhecia devido ao trabalho e trânsito na Assembleia Legislativa, assim como outros profissinais de imprensa já cruzaram com eles pelos corredores e plenário daquela Casa.
Pelas declarações do jornalista vítima do horrendo sequestro e tortura, um deles o conhecia há pelo menos 20 anos. Mas isso não foi suficiente para fazê-lo refletir sobre sua conduta criminosa diante de um conhecido, inclusive o jornalista dizia que recebia elogios do policial pelo seu trabalho jornalístico.
Somos um Estado pequeno, onde todos se conhecem, se encontram na praça, no shopping, nos eventos públicos e no desempenho de nossas profissões. Se não nos conhecemos, pelos menos já nos vimos e sabemos de quem se trata cada um, mesmo que nos ignoremos por algum motivo.
Essa é a maior surpresa. Porque estamos vulneráveis em todos os sentidos. As pessoas sabem de nossos comportamentos, dos locais que frequentamos, onde moramos, com quem nos relacionamos. E jamais imaginamos que um “amigo” ou conhecido pode ser nosso próprio algoz. Jamais!
Quando eu era repórter da Folha, no final da década de 1990, atuando na cobertura do caso de corrupção no extinto Departamento de Estrada de Rodagem (DER), um policial civil conhecido, meu vizinho, foi a minha procura, para avisar que ele tinha acabado de sair de uma reunião, no Palácio, e que haviam decidido que eu sofreria um atentado. Já que eu andava de moto, eu seria atropelado.
O policial disse que, por ser meu amigo, colega de futebol também, decidiu me avisar para que eu esquecesse o que eu estava fazendo e tomasse cuidado. Não levei a sério, porque entre as pessoas citadas por ele como articulador do suposto atentado estava um ex-político conhecido, ex-colega de profissão, ex-colega de faculdade e religioso praticante da igreja. Eu achava que era apenas para provocar a chamada autocensura.
Embora a trama não se cumprira, eu recebia ameaças, sofia agressões em dias de folga (inclusive de policiais), passava por xingamentos através de mensagens e telefonemas. Minha vida se transformou em um inferno. Mas segui, mesmo com medo, porque ainda não tinha filhos e também porque não dava muito valor à minha vida. E, diante do caso Romano dos Anjos, vejo quanto risco passei e, hoje, creio estar vivo por graça de Deus mesmo.
Os políticos, de uma forma geral, têm culpa por tudo isso que está acontecendo e pelo que já ocorreu. Porque sempre odiaram jornalistas que incomodam, que denunciam e monitoram o poder. E tudo se fixou a partir do caso do assassinato do jornalista João Alencar, em 1982, crime este que ficou impune e nunca até hoje esclarecido, embora houvesse um suposto mandante respondendo pelo crime. Alencar fazia duras críticas ao governador Ottomar Pinto, um brigadeiro da Aeronáutica,
Naquela época, havia sido instalado o crime de pistolagem no então Território Federal de Roraima, quando também surgiram os cemitérios clandestinos, cuja notícia macabra correu o mundo. Tempos em que ninguém sabia quem era bandido e quem era polícia. A violência era institucionalizada, então criticar políticos era quase uma sentença de morte.
Para se ter ideia do nível da pistalagem, até o prefeito de Boa Vista, o advogado Silvio Leite, sofreu um atentato a tiros em maio de 1987, mas não conseguiu escapar do outro em sequência, em outubro do mesmo ano, quando foi executado a tiros, dentro do seu carro, em frente ao Parque Anauá.
Mais tarde, houve o assassinato do advogado Paulo Coelho, em 1993, horas depois de tomar posse como conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, em seu discurso, ter prometido que seguiria lutando para moralizar e reformular o Tribunal de Justiça de Roraima. Foi executado no portão de casa, à noite.
Por ter sido tão descarado, esse crime teve solução e os dez envolvidos acabaram julgados e presos, entre eles os irmãos policiais civis Luiz Antonio Batista e Luis Gonzaga Batista Jr., filhos do desembargador Luiz Gonzaga Batista Rodrigues, o Gonzagão, cuja nomeação feita pelo governador Ottomar Pinto era denunciada como irregular pelo advogado Paulo Coelho.
Outros crimes de grande repercussão ocorreram, nesse meio, mas estes destacados no artigo representaram o perigo que era (e ainda é) criticar os poderosos locais, em especial para quem atua na imprensa diária. E o crime do jornalista João Alencar é emblemático para mostrar não apenas a impunidade, mas o interesse das autoridades em apagar a memória daquele bárbaro crime.
Um busto do jornalista João Alencar foi erguido numa praça no complexo Poliesportivo Ayrton Senna, em frente ao local da emboscada, como homenagem à vítima e também como um símbolo para chamar a atenção da sociedade para o crime político e a importâcia da liberdade de imprensa.
Para se ter uma ideia do incômodo e da afronta aos políticos locais, o busto foi arrancado criminosamente na calada da noite. O tempo passou e durante a reforma do local, que passou a se chamar Praça de Alimentação do Portal do Milênio, o busto foi oficialmente retirado, dando o esquecimento definitivo que os políticos tanto almejavam.
A impunidade e a trama para que o busto sumisse da praça tornaram-se uma espécie de autorização informal dos políticos para que jornalistas combativos continuassem sendo ameaçados, xingados, agredidos, sequestrados e, Deus queira que não, assassinados. A última reforma da praça, pela Prefeitura de Boa Vista, no ano passado, acabou por apagar de vez qualquer pretensão de ter de volta a memória do jornalista assassinado covardemente.
Quase quatro décadas depois, o caso romano dos Anjos nos mostra que seria necessário manter o busto de João Alencar bem vivo em destaque na principal praça pública do Estado, para que jamais esquecêssemos aquele bárbaro assassinato de um jornalista que ousou criticar os políticos da época. Terá peito, algum vereador, para reconstruir esse memorial?
Mais uma vez rogando a Deus, espero que não seja necessário que nossa sociedade chegue, um dia, a suplicar pela construção de um busto de outro jornalista da atualidade, eliminado por exercer o seu papel. Os últimos fatos nos mostram que não estamos livres e seguros por exercermos o instrumento da crítica, que é intrínsico ao nosso dever como formadores de opinião dentro de uma sociedade.
Esta é a importância do caso Romano dos Anjos, para que não fique impune, como ocorreu com o assassinato do jornalista João Alencar, uma impunidade histórica, caso este em que os políticos sequer permitiram que o busto como memorial à vítima ficasse fixado na nossa principal praça.
O momento de atacar a impunidade de atentados contra jornalistas e a imprensa livre é agora. Ou jamais iremos virar esta página de atrocidades cometidas contra os profissionais de imprensa.
*Colunista