Projeto de Nação dos militares usa teorias conspiratórias como cortina de fumaça para o golpe definitivo
Jessé Souza
Quem mora no Estado de Roraima acaba de uma certa forma suscetível a teorias conspiratórias alimentadas por um passado de incursões estrangeiras pelo Vale do Rio Branco, antes da ocupação desse imenso espaço geográfico, em busca de riquezas minerais ou mesmo para captura de indígenas para mão de obra escrava. Sem contar com expedições com fins científicos ou para levantamentos visando a delimitação da fronteira Norte brasileira ainda no tempo do Império.
Mas tem um fato importante na História: a Questão do Pirara, em que Portugal e Inglaterra disputaram uma faixa de terra, cujo conflito diplomático findou em 1904 com o Brasil cedendo uma grande aérea de terras para a Guiana, definindo o atual limite da fronteira entre os dois países. Tudo alimentado porque quase não havia soberania portuguesa sobre esta região que hoje está sob jurisdição do Estado de Roraima.
Mais recentemente, houve ainda o primeiro caso de internacionalização do garimpo de diamantes, na década de 1950, em que uma empresa da Bélgica literalmente comprou a Serra do Tepequém de uma empresa roraimense, localizada hoje no Município do Amajari. À época, a imprensa escrita local fez uma ostensiva campanha, alimentando teorias conspiratórias, insuflando os garimpeiros a reagirem contra os estrangeiros, culminando com o assassinato do gerente da empresa, que era filho do belga proprietário do garimpo. O crime levou a empresa belga a abandonar Tepequém.
Então, além de terra fértil para a corrupção, conforme foi dito, por tudo o que ocorreu por aqui Roraima tornou-se também um lugar propício para todo tipo de conspiração. A mais recente, a paranoia da internacionalização da Amazônia a partir de Roraima, foi estrategicamente elaborada por políticos e grandes empresas de mineração visando legalizar o garimpo sem lei na Terra Indígena Yanomami, aos moldes do que ocorre hoje.
Não é à toa que o bolsonarismo é forte no Estado, pois temos uma população sequelada por fortes paranóias trabalhadas estrategicamente para manter o pânico em uma área fronteiriça como forma de alienação. E os militares sabem muito bem disso, pois no passado ajudaram a instalar a paranoia da internacionalização em toda a Amazônia, especialmente em Roraima, um Estado que é um vazio institucional onde os coronéis da política local se criaram e se tornaram braço amigo e cúmplices de grandes empresas mineradoras, madeireiras e do agronegócio.
Agora estão montando uma estratégia reformulada, desta vez de abrangência nacional, sob o título de “Projeto de Nação – O Brasil em 2035”, que traça um suposto país do futuro, elaborado pelos institutos Villas Bôas, Sagres e Federalista. A tática é a mesma da paranoia da internacionalização, mas com um novo ator. Agora a grande ameaça não são mais os Estados Unidos e os capacetes azuis da Organização das Nações Unidas (ONU), os quais iriam invadir a Amazônia e tomar tudo de sobressalto a partir das terras indígenas em Roraima.
Desta vez, a China passou a ser a nova ameaça à soberania do Brasil, que a partir da Guiana iria ocupar a Amazônia. E advinha qual é o argumento para supostamente impedir essa nova invasão? Isso mesmo: abrir a exploração de terras indígenas para a mineração, extração de madeira e o agronegócio. É o mesmo script da grande teoria da conspiração que sequelou boa parte dos roraimenses e dos amazônidas de uma forma geral a partir da década de 1990.
Esse “novo” projeto dos militares foi lançado na semana passada com a presença do vice-presidente da Hamilton Mourão, o mesmo que já vem autorizando exploração de minério no entorno de áreas ambientais e terras indígenas na Amazônia, inclusive em Roraima. Como estratégia para emplacar o projeto, os militares trabalham teorias conspiratórias que incluem conflitos entre EUA e aliados de um lado, com a China e a Rússia do outro, “tendo como palco a Guiana e sua produção de ouro e, especialmente, de bauxita”. Com China como a grande potência vilã, os militares fazem questão de frisar que a fronteira do Brasil com a Guiana é frágil, sendo possível atravessar a pé.
É como se essa fragilidade nem existisse na Venezuela, onde a fronteira é violada diariamente às claras, com centenas de venezuelanos chegando a pé a Roraima, sob vistas grossas do Exército, que deixou de vigiar a fronteira para se tornar o principal acolhedor dos imigrantes que fogem do país vizinho. E por lá não chegam apenas gente fugindo da miséria, mas também armas pesadas, drogas, integrantes do crime organizado venezuelano que se instalou em Roraima, bem como todo tipo de contrabando de minérios, além de evasão de divisas.
No entanto, o “Projeto de Nação” dos militares vai muito além das conspirações bolsonaristas requentadas. Também planeja acabar com o Sistema Único de Saúde (SUS) e com o ensino superior público, disfarçado de meia privatização em que pessoas consideradas com poder aquisitivo passariam a pagar para ter acesso ao atendimento de saúde e para estudar nas universidades federais. O limite seriam três salários mínimos por família, o que praticamente levaria uma grande parcela de brasileiros a não ter mais acesso à saúde e à educação públicas, gratuitas e de boa qualidade, conforme determina a Constituição Federal.
Que ninguém pense que esse plano é uma “alucinação de milicos” caquéticos sem guerras a combater nas fronteiras. Já existem projetos tramitando no Congresso visando abrir as terras indígenas para todo tipo de exploração e para implantar a cobrança para acesso ao ensino superior nas universidades federais. O perigo nunca foi tão real quanto agora. As teorias conspiratórias são apenas uma cortina de fumaça, enquanto o plano para acabar com todos os direitos conquistados pelos cidadãos brasileiros está em curso.
Não são apenas os indígenas em perigo. Agora são todos os brasileiros, inclusive os que se acham classe média, mesmo endividados e com seu poder aquisitivo cada vez mais devorado pela onda inflacionária. Ricos não precisam de SUS e conseguem colocar seus filhos em qualquer curso superior, independente de público ou privado. Os demais estão sendo ferrados de verde-amarelo em um projeto de poder em curso que não hesita em vender o Brasil para as grandes potências enquanto os brasileiros ficam com teorias conspiratórias do tempo da carochinha.
*Colunista