Contextualizando fatos para explicar o que se passa nos dias atuais
Jessé Souza*
Como parte desta polarização entre esquerda x direita em que se tornou a disputa da campanha presidencial, intensificada neste segundo turno das eleições, alguns tentaram teorizar associando a grande votação alcançada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) (70%) ao fato de a população de Roraima vivenciar a realidade dos venezuelanos fugindo de seu país, pela fronteira Norte.
Por questão ideológica, pode até ser que isto tenha um fundo de verdade, mas não representa o que realmente ocorre com esta preferência do eleitorado roraimense, uma vez que, por aqui, realmente a população foi submetida a diversas paranoias que levaram muitos a temerem o comunismo, mesmo isso sendo um argumento raso para meter medo naqueles menos desinformados ou incautos a uma propaganda ideológica da extrema direita baseada em fake news.
Mas essa preferência por Bolsonaro tem raízes mais profundas deixadas na História da consolidação desta fronteira brasileira. A começar pelas reais ameaças que existiam de uma invasão de estrangeiros, como ocorreu a partir da República da Guiana (ex-Inglesa), conforme ficou registrado na Questão do Pirara, um conflito diplomático entre Portugal e Inglaterra, encerrado em 1904 com a cessão pelo Brasil de parte do território disputado entre os dois países.
Outro fato histórico que mexeu no inconsciente coletivo foi a compra do direito de exploração de diamantes na Serra do Tepequém, no Município do Amjari, na década de 1950, por uma empresa belga, cujo fato era abordado pela imprensa local como uma internacionalização do garimpo, insuflando os garimpeiros brasileiros a se rebelarem contra os empresários belgas, o que culminou com o assassinato de um deles, pondo fim à exploração da empresa estrangeira. O episódio inclusive ficou conhecido como “libertação do Tepequém”.
Então, os roraimenses da atual geração cresceram ouvindo histórias de ameaças de garimpo e invasão internacional, cujo cenário de medo acabava sendo alimentado pela realidade política administrativa desta terra, desde a colonização, sob o comando de militares até a transformação em Território Federal. Não é à toa que a criação de Boa Vista começa a ser contada depois do declínio do Forte de São Joaquim, após batalhas sangrentas em que os indígenas eram dizimados.
Então, a população local não apenas ouviu histórias como vivenciou governos militares, inclusive durante a transição para a democracia, quando o Território Federal de Roraima foi governado no início da década de 1980 pelo brigadeiro Ottomar de Sousa Pinto, já falecido, que ficou marcado na História local como o “pai dos pobres”, que governava com mão de ferro, com rompantes e atitudes muito parecidas com o atual presidente do Brasil.
De fato, Ottomar foi responsável por grandes obras e acabou sendo amado pelos pobres por promover um governo populista e assistencialista, ao mesmo tempo em que censurava a imprensa, ameaçava opositores (há casos escabrosos nunca revelados ou provados), mandava e desmandava como um governador absoluto, cenário este que começou a mudar a partir da abertura democrática no final da década de 1980.
Mesmo assim, odiado por muitos e amado pelos pobres, entre indígenas urbanizados e nordestinos migrantes empurrados para a fila do assistencialismo, foi o primeiro governador eleito do recém-instalado Estado de Roraima, criado com a promulgação da Constituição de 1988. Foram épocas de instalação do Estado marcadas por forte assistencialismo e de uma política marcada pela pistolagem.
E foi nesse ambiente político de amor e ódio aos militares, com pavor de teorias conspiratórias, que os políticos locais descobriram que a população era suscetível a medos imaginários ou não, quando passaram a alimentar a paranoia da internacionalização da Amazônia a partir de Roraima, como instrumento não só de dominação, mas também como uma forma de serem absolutos na política.
Essa paranoia foi base fundamental para a defesa do garimpo ilegal nas terras indígenas e pela posse de terras indígenas por arrozeiros, estabelecendo o ódio aos povos indígenas, os colocando como entraves ao desenvolvimento do Estado e agentes entreguistas, bem como responsável por criar a popularidade de políticos que usavam teorias conspiratórias para se fixarem, com discurso para incutir o pânico na população e, ao mesmo tempo, se colocando como os únicos capazes de combater esse “monstro” que eles mesmos criavam e alimentavam.
Os políticos iam para as rádios, então os principais veículos de comunicação da época, alardearem o pânico, dizendo que os “capacetes azuis da ONU” iriam invadir a Amazônia a partir das terras indígenas, que as ONGs eram agentes entreguistas e manipuladoras dos indígenas. E foi assim que eles passaram a se eleger e se reelegerem até encontrarem outra forma de dominação: a corrupção. Mas essa é outra história.
Hoje, parece conto da carochinha um político usar a paranoia da internacionalização para ganhar votos, mas tudo aquilo ainda está bem fresquinho na cabeça dos mais antigos e até dos mais novos, os quais cresceram na fila da doação de brinquedos, em que o paizão governador militar entregava os presentes com as próprias mãos, entre xingamentos a quem o desagradasse e afagos na cabeça de idosos e bebês.
E foi assim que surgiu Bolsonaro como preferência dos eleitores roraimenses, que aprenderam a adorar o militar grosso, autoritário e temido por seus atos, mas que era considerado o paizão que enaltecia o militarismo, flertava com a ditadura, defendia o garimpo a qualquer custo, não hesitava em ser politicamente incorreto e que até tinha um discurso contra o comunismo, afinal, era um brigadeiro nomeado para governar Roraima na cota da Força Aérea Brasileira (FAB).
Até hoje há quem diga que Ottomar foi o melhor político que já existiu até os dias atuais em Roraima, um “mito”, com saudades eternas daquele momento da História em que jornalistas considerados opositores do seu governo eram literalmente arrastados do Palácio Senador Hélio Campos pelos seguranças. Ou xingava quem o desafiasse, como em um momento em que, ao ouvir a crítica de uma sindicalista durante um evento no Palácio da Cultura, esbravejou questionando “de que buraco tinha saído aquela mulher”, causando indignação pela fala misógina.
Naquela época, das décadas de 1980 a 1990, os migrantes nordestinos eram alvos de xenofobia, da mesma forma que os venezuelanos da atualidade o são. Tudo muito parecido com os dias atuais… uma época que, ser de esquerda ou um crítico ao siste
ma, era mortal…
Muitos sentem saudade desse tempo!
*Colunista