Jessé Souza

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Na despedida da maior ícone do jornalismo brasileiro, uma discussão sobre o racismo

Jessé Souza*

A morte da jornalista Glória Maria, um ícone da imprensa brasileira, trouxe à tona a discussão sobre o racismo no Brasil, um assunto que incomoda muitos, a ponto de quererem negar a existência deste câncer social da humanidade. Dentro das homenagens feitas pela Globo, ganhou destaque o fato de ela ter sido a primeira brasileira a usar a Lei Afonso Arinos, que proibiu a discriminação racial no Brasil, em 1951.

Embora a lei daquela época não considerasse o racismo um crime, e sim uma contravenção, foi um grande avanço. Barrada em um hotel por um gerente estrangeiro, que disse que negro não podia entrar, Glória Maria chamou a polícia e levou o caso à Justiça. O homem foi expulso do país, mas se livrou da acusação ao pagar uma multa irrisória de acordo com que a lei permitia.

“Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode”, comentou a jornalista em uma postagem no seu Instagram em 2019. “Racismo dói na alma”, disse em uma entrevista. Quem é negro ou indígena sabe muito bem o que é isto dentro de uma sociedade que discrimina não só pela cor ou etnia, mas porque a pessoa é pobre.

Em Roraima, um Estado com a maior população indígena do país, muitos vivendo em contexto urbano, é conhecido por ter uma população anti-indígena. Desde o final do ano passado, eu vinha pensando em escrever sobre este assunto, depois que fui vítima de um ato racista em um bar que fica nas proximidades da Universidade Federal de Roraima (UFRR), inclusive onde toca uma banda de rock formada por irmãos indígenas que lá estudam.

Fiquei remoendo o episódio para não escrever com a tinta da bílis, até chegar a ler uma postagem no perfil de uma professora da UFRR, Samara Guedes, no Facebook, no dia 21 de janeiro deste. Lá, ela narra que, na cidade onde ela mora, Boa Vista,  existem pessoas que detestam indígenas, falando isso abertamente, mas que contraditoriamente ninguém reage contra o racismo e injúria racial.

“Nunca vi ninguém ser preso ou processado porque discriminou um indígena. Essa cultura aqui é normalizada e ninguém faz nada. Já passou da hora de isso incomodar as pessoas”, afirmou a professora na postagem ao relacionar as falas racistas normalizadas em Roraima: “São preguiçosos; São sujos; São cachaceiros (quem não é); Só trabalham pra comer (quem nunca); São cheios de regalias (morrer de fome é regalia?) E por aí vai.. E não suscita assombro e nem revolta”, escreveu.

De origem indígena, sofro todos os tipos de ataques, de forma velada ou não, desde que passei a atuar na imprensa, os quais procuro encarar da melhor forma possível. A situação é tão complicada que, tempos atrás, um jornalista (que Deus o tenha) postou na sua rede social uma mensagem me criticando por ter uma posição de crítica ao racismo, como se eu vivesse me vitimando, me passando por coitadinho.

Muitas vezes é preciso fingir. Outras não. No caso do insulto que sofri, tratava-se de um senhor de cabelos brancos sentado a uma mesa de frente para minha. Ele chamou um indígena venezuelano que estava vendendo colares e artesanato indígena. O senhor já começou o tratando no deboche, dizendo que ele teria que vender arte da Bahia – provavelmente o Estado de origem dele. Mesmo assim comprou um colar.

Depois, já com o colar no pescoço, passou a me insultar gratuitamente, debochando da minha origem indígena. Preferi me levantar, pagar a conta e ir embora. Porque eu me conheço. Fui para outro lugar, do outro lado do campus da UFRR. Para minha surpresa, mais tarde, quem vejo chegando ao local? O mesmo senhor de cabelos brancos. Esperei o momento para encontrá-lo no banheiro, somente eu e ele, onde ele teve que ouvir tudo o que precisava e um pouco mais.

Sem plateia e no cara a cara, tentou alegar que se tratava de uma brincadeira e, para argumentar que não seria racista, disse que era professor da UFRR, onde estudam indígenas. Esta é a sociedade roraimense, onde as pessoas normalizaram o racismo, tomado como “brincadeira de bar”. No fim da minha ira, arranquei o colar indígena do pescoço do senhor, o qual foi comprado sob tom racista de um Warao. “Você não é digno de usar este colar”, afirmei, desta vez sob o olhar de outro homem que acabara de entrar no banheiro.

Sim, precisamos discutir mais sobre isto, professora Samara, até que incomode todas as pessoas e os casos cheguem finalmente ao Tribunal, como fez Glória Maria. Porém, antes disso, arrancar um colar indígena do pescoço de um racista, que leva tudo como “brincadeirinha”, também me consola um pouco…  mas só um pouco.

*Colunista