Falta de transparência fundiária e incitação à violência sobre a revisão de terras indígenas
Jessé Souza*
Um malicioso discurso vem sendo pregado há um certo tempo a respeito da retomada da demarcação de terras indígenas, especialmente em Roraima, com o explícito incitamento à violência. É de conhecimento público que o governo anterior sumariamente paralisou quaisquer processos de reconhecimento de terra dos povos originários, da mesma forma que é público e notório que o atual governo reestruturou os órgãos para a retomada da política indigenista.
Porém, o que os atiçadores do ódio não esclarecem é que todos os pedidos de revisão de demarcação de terras indígenas em Roraima não são novos e que desde 2018 as autoridades locais têm pleno conhecimento de todas as informações sobre os 25 pedidos, os quais são chamados de registros de reivindicações fundiárias indígenas que estão no Sistema Indigenista de Informações (SII) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Como o governo passado paralisou tudo e transformou a Funai em um órgão a favor do agronegócio e do garimpo, os processos foram engavetados e o assunto encerrado sumariamente. Ninguém mais falou sobre isso e, não apenas isso, em Roraima o governo Antonio Denarium, assim que assumiu, deu início a um processo silencioso de titular áreas públicas no entorno destas terras indígenas que reivindicam revisão de domínios com ampliação de áreas.
Isso mesmo: desde o início da primeira gestão, o atual governo deu largada a uma ostensiva estratégia de titulação sem transparência e sem qualquer diálogo com a sociedade. Muito menos tentaram entendimento com essas comunidades indígenas que já pleiteavam a revisão fundiária de suas áreas há muito tempo. Tal decisão tem levado a questão para uma realidade que ampliou os efeitos de problemas mal resolvidos no entorno dessas 25 terras indígenas.
O que fica bem claro é que não houve (e nunca haverá) a mínima preocupação do Governo de Roraima em prevenir não somente novos conflitos com as populações indígenas, mas também o acirramento de conflitos fundiários entre os próprios posseiros, problemas estes que fatalmente irão chegar aos tribunais, abarrotando ainda mais a nossa burocrática Justiça.
O liberou geral de titulação de terras decretado pelo atual governo atraiu também os espertalhões, que se valem da situação nebulosa para ocuparem e venderem terras públicas, especialmente em áreas que estão dentro dos limites pretendidos pelas comunidades indígenas nos últimos anos, algumas com processos tramitando há décadas.
Como faltou transparência e diálogo do governo com outras instituições e com as entidades indígenas, foi construída uma realidade de total insegurança jurídica e com ostensiva alimentação de violência agrária. E isso certamente irá refletir na questão fundiária do Estado e na credibilidade junto a produtores que pretendem investir em Roraima na agricultura e em outros setores.
Há uma evidente intenção de provocar novos conflitos, em vez de obedecer aos princípios da segurança jurídica. A forma correta que as autoridades locais deveriam agir, especialmente o Governo do Estado por meio do Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima), seria ter esclarecido muito bem esta questão, deixando claro para a sociedade quais são essas áreas reivindicadas pelas comunidades indígenas. Os mapas com todas as áreas pretendidas são documentos públicos antigos.
Mas, em vez de diálogo e transparência, deu-se início a um festival de titulação das áreas no entorno das terras indígenas, o que deverá criar problemas fundiários em um futuro bem próximo, inclusive podendo levar a sérios conflitos. Ao não agir com transparência, o governo ainda irá aumentar o número de envolvidos nesses futuros conflitos que irão surgir, uma vez que os processos de revisão voltaram a tramitar na semana passada.
Basta verificar a base cartográfica dos cartórios ou mesmo do Iteraima para logo perceber a grande bomba que se transformou a ação das autoridades estaduais que não tiveram a mínima preocupação em prevenir novos conflitos e de evitar vítimas de espertalhões fundiários. Pior: para se livrarem de suas espertezas e esquemas, agem de forma desonesta para insuflar a opinião pública e alimentar um clima de instabilidade fundiária que eles mesmos criaram.
Os discursos de ódio vêm sendo construídos estrategicamente e um movimento incitador da violência ganha corpo, inclusive entre parlamentares novatos ligados a grandes produtores rurais. Todos escondem a verdade que vem sendo ocultada propositalmente nos últimos quatro anos sobre a questão fundiária, cuja realidade foi atropelada por garimpo ilegal, trabalho escravo, exploração sexual de mulheres, indícios de corrupção, narcotráfico e outras mazelas. Agora querem criar um novo conflito para desviar a atenção de tudo isso que está ocorrendo.
*Colunista
** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV