Tempos de recorte de jornal e a situação da maternidade debaixo de lona
Jessé Souza*
Com muito tempo de demora, o Ministério Público Federal recebeu denúncia sobre o atraso na obra de reforma do Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, bem como sobre mortes de mães e crianças no hospital improvisado debaixo de lona, falta de medicamentos e até violência obstétrica. Embora tenha sido protocolada por uma parlamentar federal de primeiro mandato, há mais de um ano a imprensa e as redes sociais vêm divulgando e compartilhando as mais diversas denúncias de desmantelo na maternidade.
Não se pode esquecer que, apesar da maioria dos casos ficar oculta, porque as denúncias não chegam ao conhecimento da opinião pública, no inverno do ano passado ganharam ampla repercussão os seguidos casos do teto de lona da maternidade desabando, em dias de chuva, sobre mães e seus bebês, parecendo cenas de filme de terror, com as mulheres quase se arrastando com suas crianças nos braços para fugir do perturbador sinistro.
Aliás, pelo tempo das denúncias, investigações nesse sentido já deveriam ter sido concluídas e ações judiciais inclusive sendo decididas pela Justiça, seja punindo responsáveis ou obrigando o Estado a cumprir com suas obrigações. O Ministério Público de Roraima, no ano de 1997, já mostrou como se faz. Os promotores daquela época não esperaram sentados. Bastou que a Folha de Boa Vista denunciasse as graves mortes de bebês nesta mesma maternidade para que abrissem imediatamente um procedimento investigatório com base em um recorte de jornal impresso.
Não houve nada de extraordinário na atitude daqueles jovens promotores de outrora, pois faz parte das atribuições constitucionais do MP o princípio da atuação espontânea ou de ofício, conforme consta no artigo 129 da Constituição Federal, a qual fora promulgada oito anos antes daquele fatídico episódio de mortes de recém-nascidos no berçário do Hospital Materno Infantil. Um escândalo que teve repercussão nacional.
Não custa lembrar que o MP, como um órgão de fiscalização, tem a prerrogativa de agir de ofício tão logo chegue ao seu conhecimento, por qualquer meio, uma denúncia de ilegalidade que seja de interesse público. Inclusive, todo órgão fiscalizador pode atuar de ofício para garantir os direitos constitucionais do cidadão e a defesa do patrimônio público. No entanto, hoje os órgãos ficam esperando ser incitados por algum documento submetido a uma burocracia que dificulta a vida inclusive de quem se mostra disposto a denunciar.
Mas o fato é que o MPF agora tem uma denúncia carimbada e protocolada, então não há mais nenhuma desculpa ou argumento para deixar de agir, uma vez que há quase dois anos a maternidade estadual funciona improvisadamente debaixo de tendas, onde estão morrendo bebês e submetendo mães a um atendimento sofrível, inclusive existem vídeos de grávida no piso da maternidade. Nem isso impede que o MPRR também aja, ainda que tardiamente, algo impensável há 26 anos quando um recorte de jornal era suficiente para agir.
Questionamentos não faltam para ser respondidos pelas autoridades, pois a denúncia protocolada no MPF afirma enfaticamente que, no período de 2019 a 2022, o Governo do Estado recebeu mais de R$ 192 milhões destinados à saúde do Estado. Ou seja, recursos recebidos no primeiro governo da atual gestão, os quais foram originados de repasses de emendas parlamentares e dos programas do Ministério da Saúde.
E o que é mais grave: a denúncia ainda aponta que parte desses recursos retornou aos cofres da União, como foi o caso de R$ 17 milhões destinados à reforma da maternidade, o que serviu para prolongar o sofrimento de mães que vão dar à luz debaixo de lonas e contribuindo para as mortes de bebês, um escândalo que ficou no silêncio até hoje. O povo agora quer saber o que ocorreu com essa dinheirama e quem será responsabilizado pelo que está ocorrendo na maternidade de lona.
*Colunista