Na infância, mudar a regra do jogo no meio ou no final parecia um brincadeira inocente
Jessé Souza*
Não era raro encontrar colegas de escola, naquela boa e velha infância, que inventavam regras no meio ou no final da brincadeira para que não saíssem derrotados. Na verdade, até mesmo na fase de adulto, nas peladas de futebol no campinho do bairro, sempre aparecia alguém para contestar o gol do time adversário apenas para impedir a derrota do seu time.
É assim que pode ser comparada a ação do partido do presidente Jair Bolsonaro, o PL, que pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos somente das urnas onde Bolsonaro perdeu no segundo turno, deixando de questionar o resultado do primeiro turno das eleições, onde o PL elegeu um grande número de congressistas.
Obviamente que um pleito judicial neste sentido não iria prosperar, jamais, pois o mais sensato, caso realmente houvesse uma comprovada fraude em somente parte das urnas eletrônicas, teria o poder de anular toda a eleição, e não somente parte das urnas apuradas no segundo turno. Isso é a lógica.
Infelizmente, como se pode concluir, esse pedido judicial tem outro propósito, que é o de alimentar a paranoia que vem sendo alimentada desde o fim das eleições de 2018, que hoje municia seguidores em verde-amarelo que não aceitam o resultado das eleições apenas para presidente, uma vez que o primeiro turno representa uma vitória bolsonarista no Congresso.
Tal fato representa mais um capítulo do movimento golpista que pede uma intervenção federal, enquanto o país tenta seguir o seu caminho a fim de colocar um fim neste período brasileiro nebuloso, em que a terra plana ganhou força e a ciência passou a ser ironizada.
Encontrar motivos para atacar os poderes constituídos e negar o resultado das eleições tornou-se um instrumento político para alimentar os devaneios de uma grande parcela da população, alimentada por fake news tão esdrúxulas a ponto de inventarem até uma teoria conspiratória de que um impostor estaria no lugar no presidente eleito.
Algo tão absurdo quanto os negacionistas pregavam ao rechaçar a vacina, quando diziam que dentro de um ano iriam morrer de ataque cardíaco todos aqueles que tomaram vacina. Já se passaram dois anos do compartilhamento desta mentira, mas parece que todos esqueceram da premonição absurda e de outras igualmente irracionais que alimentaram teorias conspiratórias em pessoas predispostas a qualquer apocalipse seletivo.
Este fim de ano será atípico em um país dividido ao meio, em que praticamente metade da população está suscetível a temer monstros que foram criados nos tempos da guerra fria durante a disputa entre capitalismo e comunismo, onde valia de tudo para aterrorizar adversários ou alimentar uma lavagem cerebral em aliados.
O Brasil precisa se livrar desse absurdo o quanto antes, eliminando tudo aquilo que remete a um fosso de onde monstros emergem para assustar uma sociedade submetida a um movimento retrógrado, que se vale de antigos temores irreais para guindar ou manter no poder políticos tão absurdos quanto as mentiras que eles usam para alienar as pessoas.
Esses monstros precisam ser exorcizados dentro da legalidade, se valendo das leis e do que preconiza a Constituição Federal, uma vez que até a liberdade de expressão tem um limite, em que dentro da democracia as pessoas podem expressar tudo o que pensam, desde que respondam por seus atos juridicamente.
Os golpistas subvertem esse preceito constitucional e pregam que estão sendo perseguidos e censurados por suas opiniões. Mas, na verdade, é que eles apenas estão respondendo judicialmente por seus atos. Quem prega e apoio o golpe comete um crime. A democracia permite que golpistas se expressem à vontade, mas todos estão sujeitos a responderem criminalmente por isso. Simples assim.
*Colunista