Neymar e a Síria
Paramos para tomar um sorvete no Complexo Ayrton Senna, na tarde de sábado, onde a atendente geralmente, depois que o cliente pagar a conta, entrega um panfleto evangélico para pregar a palavra de Deus. Porém, naquela tarde, uma cena quebrou a mesmice do cenário: um venezuelano visivelmente desnutrido chegou vendendo não mais que uma dúzia de meias e algumas bugigangas.
Assim como as demais pessoas que ali estavam tomando sorvete acompanhadas de namorados (as) ou de seus familiares, eu também disse que não tinha interesse em comprar nada. O venezuelano, então, implorou que ao menos eu comprasse algo porque ele ainda não havia comido.
Embora eu tivesse dispensado aquele senhor, bateu-me o arrependimento e o chamei de volta, dizendo que pagaria algo para ele comer. Pela atitude da atendente, a mesma que distribui panfletos cristãos, que fez cara feia e mostrou má vontade em atender o venezuelano, refleti sobre como muitos agem diante do que ocorre aqui, na nossa realidade, e do que ocorre longe, em outros países e outros continentes.
Quando os venezuelanos começaram a chegar em massa, muitos reagiram de forma insensível, sem sequer se compadecer das crianças venezuelanas nos semáforos pedindo esmolas com seus pais. Pelo contrário, houve até vozes de gente clamando pela expulsão ou espalhando boatos para jogar a opinião pública contra os estrangeiros.
Porém, muitas dessas pessoas não demoram a se solidarizar com o jogador Neymar (#FORÇANEYMAR), que sofreu uma fratura no dedinho do pé, enquanto milhares de brasileiros estão na fila dos hospitais ou precisando de força para sobreviver; ou se condoem ruidosamente com as crianças da Síria (#SIRIAPEDESOCORRO), mas ignoram as crianças venezuelanas morrendo de doença ou passando fome nos semáforos.
A moça da sorveteria que distribui panfleto evangélico é só mais uma daquelas pessoas que pregam em nome de Deus, mas não enxergam a necessidade de um estrangeiro passando fome a sua frente. Há muitos mobilizados nas redes sociais pelo Neymar, pelas crianças sírias, pelas orcas sendo mortas nos mares, pelo mico-leão-dourado em extinção, mas que não se sensibilizam com os necessitados que estão aos seus olhos.
Quando o venezuelano pegou a pizza pequena e o refrigerante que eu paguei, sob o semblante fechado da atendente, ele deu apenas uma mordida, embrulhou o restante para guardar em sua bolsa. Ao agradecer, disse que iria levar o pedaço da pizza para seus filhos, que ainda não haviam comido naquele dia. Essa é a realidade que estamos vivendo em Boa Vista, mas ela não sensibiliza tantas pessoas efusivamente como as campanhas #FORÇANEYMAR ou #SIRIAPEDESOCORRO.
*Jornalistae-mail: [email protected]: www.roraimadefato.com.br