O caso Cascavel que nos revela muita coisa sobre o Brasil das desigualdades
Jessé Souza*
No Brasil das desigualdades, para uma pessoa pobre ir para a cadeia basta uma acusão simples de furto de água. Mas, para uma pessoa influente, até mesmo acusações graves são abafadas pela imprensa e, por conseguinte, a Justiça demora a tomar uma decisão sob o argumento da presunção de inocência e a ampla defesa.
É emblemático o caso do político e empresário Airton Cascavel, que já foi prefeito de Mucajaí, deputado estadual, deputado federal, secretário estadual de Saúde do governo Antonio Denarium (PP) e assessor do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, homem de confiança do presidente Jair Bolsonaro (PL). Serve para confirmar como funcionam as coisas no país da atualidade.
Cascavel foi preso ontem, em Boa Vista, por determinação da Justiça de Santa Catarina, sob acusação de ter estuprado uma jovem em 2017, quando ela tinha 17 anos e foi morar na casa da familia dele, em Joinville, com a justificativa de que o empresário iria ajudar nos estudos. Porém, essa não foi a primeira acusação e nem a mais grave delas (se é que seja possível mensurar o que é mais grave nestes casos).
Em setembro do ano passado, Airton Cascavel já havia virado réu por estupro de vulnerável, conforme denúncia do Ministério Público de Roraima, que o acusa de estuprar a própria neta, de 2 anos de idade. Político influente no Estado (que conquistou 10.490 votos para deputado federal em 2018, com votação nos 15 municípios), muitos saíram em sua defesa.
Porém, esta não era a única denúncia. Cascavel também é investigado em outro inquérito por um caso em dezembro de 2019, em que foi denunciado por cometer abuso sexual contra uma criança de 12 anos, conforme ocorrência registrada pela mãe da menina no Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente da Polícia Civil de Roraima. Este caso foi solenemente abafado pela imprensa.
Trocando em miúdos, foi preciso uma terceira denúncia para que ele fosse preso e, ainda assim, por determinação da Justiça de outro Estado, pois, por aqui, até então, vinha sendo tratado como uma “pessoa sem histórico de violência nos quase 40 anos de vida no Estado” e que sempre “dedicou carinho e atenção especial aos familiares”. Os casos foram tratados como “denunciação caluniosa”.
Mas o histórico desse político, que chegou a ser considerado o “número 2” do Ministério da Saúde durante a gestão do general Eduardo Pazuello, já vinha sendo marcado por denúncias e processos na Justiça Eleitoral. No ministério, seu nome ganhou projeção nacional ao ser convocado para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid do Senado Federal, em agosto de 2021.
Em julho de 2021, o Ministério Público do Distrito Federal (MPF-DF) pediu para a Polícia Federal a abertura de inquérito contra Airton Cascavel. Ele foi considerado suspeito de negociar, em nome do Ministério da Saúde, junto a governos estaduais e prefeituras, mesmo sem ter vínculo com aquela Pasta, no primeiro semestre de 2020.
A acusação era de crime de usurpação de função pública (usar o cargo sem ter direito). A denúncia foi feita por uma reportagem da Folha de São Paulo. Em uma de suas atuações, fez gestão para conseguir uma doação de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) da Fundação Itaú para o Governo de Roraima.
Essa influência em Brasília foi a justificativa alegada para o governador nomeá-lo secretário estadual de Saúde, onde ficou pouco tempo, pois pediu demissão alegando ter contraído Covid-19. A saída dele do cargo ocorreu 12 dias depois do MPF ter pedido a investigação à Polícia Federal. Porém, a ligação política era antiga, pois Cascavel chegou a ser cogitado para assumir a Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), cargo para o qual teve seu nome reprovado pela deputados estaduais.
Enquanto tudo isso ocorria, Airton Cascavel respondia no Tribunal Regional Eleitoral de Roraima (TRE-RR) por crime eleitoral, junto com o deputado estadual Éder Lourinho (PTC), que teve seu mandato cassado no ano passado no final de um processo marcado por seguidas suspensões do julgamento, no total de cinco. Cascavel, por sua vez, foi multado.
Os dois foram condenados por participar de esquema de compra de votos no Município de Caracaraí, nas eleições de 2018. Eles foram flagrados na véspera do dia da votação, pelo Ministério Público Eleitoral, que fiscalizava a região da Prainha, na periferia de Caracaraí. Quatro pessoas foram presas, entre elas um pastor evangélico, os quais estavam com R$ 6,6 mil dentro de um carro.
As investigações apontaram que o valor era para comprar votos por R$100,00, cada um, para Éder e Cascavel. Inclusive, junto com o dinheiro recolhido pelo MPE, estavam “santinhos” e listas com nomes de moradores. Uma das promessas do pastor era fazer um churrasco para os eleitores e fiéis.
E assim terminou a carreira de um dos políticos influentes de Roraima, que estava sendo cogitado como um nome forte para se eleger deputado federal este ano. E foram precisos três denúncias de estupro para que fosse preso. Mas nem seus processos e denúncias foram capazes de impedir que ele chegasse a ser nomeado para cargos importantes.
É o Brasil. É Roraima!
*Colunista