O pedido de socorro dos Yanomami e os rumorosos casos sem explicação até hoje
Jessé Souza*
Sem conseguir sensibilizar as autoridades brasileiras sobre a grave situação do povo Yanomami, por meio de recorrentes documentos enviados relatando a grave situação do garimpo, as lideranças indígenas decidiram recorrer à imprensa para denunciar a situação daquela terra indígena, o que resultou na reportagem divulgada no domingo passado, no programa Fantástico, da TV Globo.
Apesar dos embates históricos que as organizações indígenas mantém, inclusive contra a imprensa, a saída foi decidir pelo convite feito por lideranças indígenas para que os jornalistas daquela emissora fossem conhecer a realidade das aldeias na Terra Indígena Yanomami, o que acabou se tornando um pedido de socorro para o mundo.
A repercussão da matéria mostrou que as organizações indígenas precisam olhar a imprensa não como inimiga, mas entender as contradições que a mídia carrega em seu ventre para aprender a transitar pelos meandros da mídia, a fim de saber usar o papel da imprensa a favor dos interesses das populações indígenas. Os governantes só se sentem obrigados a agir quando são pressionados pela opinião pública e monitorados pela imprensa.
Ao deixar às claras os gravíssimos danos provocados pelo garimpo ilegal e o visível abandono dos indígenas pelo governo (ou pelo menos pelos órgãos responsáveis pela saúde indígena e a proteção de suas terras), a reportagem levou os fatos ao conhecimento da opinião pública e chamou as autoridades para que assumam suas responsabilidades, obrigando-as a agir diante da repercussão ampla da denúncia.
O drama das crianças desnutridas e acometidas por parasitas, a malária que adoece toda aldeia, a brusca redução da alimentação, a destruição do seu habitat pelas máquinas garimpeiras e a desasistência por parte da saúde pública já vinham sendo denunciados há tempos, seja pela Hutukara ou por outras entidades, pela fala da deputada Joenia Wapichana (REDE) no Plenário da Câmara e pela Frente Parlamentar Mista em Defesa Dos Direitos dos Povos Indígenas.
Porém, um fato tem ficado oculto: a corrupção que vem de longas datas, a qual é alimentada pela política do toma-lá-dá-cá, que permite que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), órgão da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) responsável pelo atendimento básico dos povos indígenas, passem a fazer parte de cotas parlamentares para nomear seus dirigentes e até mesmo servidores.
Essa prática não é de hoje. Os indícios são antigos e os rumores se mantém até os dias atuais, diante de órgãos com orçamentos milionários, disputados a tapas pelas indicações políticas, cuja cena já foi muito barulhenta em um passado não distante, quando duas empresas aéreas brigavam pela contratação milionária para executar voos para as terras indígenas.
O rumoroso caso ficou conhecido pelo assassinato do empresário de aviação civil, Francisco Assunção Mesquita, o Chico da Meta, em 2011, cujo acusado foi outro empresário concorrente, Vibaldo Nogueira Barros, o Vivi, que estava preso, mas conseguiu fugir do quartel da Polícia Militar, para protagonizar outro rumoroso caso, que foi sua polêmica morte durante a durante a fuga, quando o avião caiu logo após decolar.
Anos antes, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que era responsável pela saúde indígena, vinha sendo alvo de constantes denúncias, até estourar, em 2007, a Operação Metástase, quando a Polícia Federal prendeu 25 pessoas, sendo 16 funcionários da Funasa, todos acusados de fraudes em serviço de transporte de táxi aéreo, obras e compra de medicamentos, num desvio de R$ 34 milhões dos cofres públicos.
Como as indicações políticas continuam dominando esse cenário, então é necessário passar a limpo as contas dos distritos sanitários, com uma verdadeira varredura nos contratos destinados para a saúde indígena. Afinal, o Ministério da Saúde divulgou que o atual governo destinou R$215 milhões para o Dsei Yanomami desde 2019. É uma cifra relevante para uma situação decadente dos indígenas, onde falta o básico.
Além disso, embora o governo tenha investido pesado na cloroquina como preventido ao coronavírus (apesar de ser um remédio contra malária), inclusive com o Exército passando a fabricar o medicamento durante a pandemia, os Yanomami não têm esse remédio para tratar a malária em suas aldeias, o que só agrava o quadro de saúde dessas populações, que correm sério risco de extinção, em uma situação parecida com o que ocorreu na invasão garimpeiro no final da década de 1980 e início de 1990.
As operações policiais e do Exército, em conjunto com órgãos ambientais, não têm conseguido frear a ação do garimpo nas terras yanomami, com frentes cada vez mais audaciosas, financiadas por pessoas ou grupos de alto poder aquisitivo, inclusive com surgimento de milícias que já atacaram indígenas e até policiais federais, desafiando os poderes constituídos e fazendo da Constituição Federal letra morta, especialmente no artigo 231.
É por isso que a situação do povo Yanomami torna-se um imenso desafio, pois além da situação do garimpo ilegal cada vez mais organizado, é necessário saber o que ocorre com os milionários recursos destinados à saúde indígena e impedir que a politicalha continue dando as cartas nesse setor, como vem ocorrendo desde os tempos de Funasa, quando casos cabulosos ocorreram e ficaram sem explicação até hoje.
Agora, com o que foi exposto para o mundo, torna-se uma obrigação das autoridades brasileiras agirem rápido para salvar a vida dos indígenas, bem como impedir o acelarado processo de destruição dos principais mananciais de água potável do Norte do país, importantes não só para garantir o futuro da população de Roraima, mas de todo o ecossistema da Amazônia. Não há mais como esconder os fatos nem desviar a atenção com fake news.
*Colunista