OPINIÃO

O SABER INÚTIL

O SABER INÚTIL

Ana Cláudia Sequeira Leite Pereira

Aluna do Curso de Filosofia da UERR

O filósofo renascentista-humanista Michel de Montaigne, no longínquo século XVI, nos presenteou com as suas ricas e profundas reflexões, especificamente, no seu ensaio filosófico: “Do pedantismo”. Considero um presente porque a sua leitura pode produzir o efeito de nos ensinar, logo, nos edificar, tanto em nosso mundo interno, que é o nosso campo meditativo e de percepção, como em nossa vida prosaica, aquela do dia a dia. Pois, por meio de seus pensamentos somos convidados a descortinar as janelas de nosso olhar, para refletirmos sobre as nossas motivações reais no contexto da busca pelo conhecimento, bem como a pensarmos, seriamente, no papel e na responsabilidade dos educadores em geral, no desenvolvimento de uma alma virtuosa nos indivíduos, não devendo prevalecer a busca desenfreada por saberes que se revelam inócuos na vida prática.

De início, Montaigne critica, severamente, o indivíduo que não retira proveito do conhecimento que adquire. Indignado, reflete e indaga como pode ser que uma alma rica em conhecimento de tantas coisas não se torne mais viva e mais esperta […]?” (MONTAIGNE, 2017).

Logo em seguida, ainda no fulgor de sua indignação, questiona como é possível que um espírito grosseiro e vulgar possa abrigar em si, – sem se beneficiar -, as palavras e os julgamentos dos mais excelentes espíritos que o mundo já produziu? Em outras palavras: Como é possível conhecer e guardar dentro de si os pensamentos mais elevados dos outros, mas não os ter impregnados nos recônditos do seu próprio espírito, de modo a reverberar, inevitavelmente, no seu coração e nas suas ações?

Nesse liame, Montaigne reflete tentando compreender por qual razão há clérigos, professores, sábios e outros líderes que apesar de representarem autoridade em áreas importantes do conhecimento, muitas vezes não são respeitados como era de se esperar que fossem, socialmente. A sua justificativa a respeito dessa questão, reside no comportamento desrazoável que apresentam, que por sua vez, entra em contradição com o saber que ostentam. Reforçando-se assim, a percepção de que é melhor uma “cabeça bem-feita”, do que uma “cabeça cheia.”

Portanto, o saber adquirido, incapaz de gerar um movimento interior no ser humano, de modo a transformá-lo em algum aspecto num indivíduo melhor, elevando a sua estatura moral, é manifestamente inócuo. Assim, só serve para encher a memória, sem gerar entendimento, aprendizado eficaz e consciência sobre si mesmo, os outros e a vida. Nesse sentido, merece destaque o seguinte trecho escrito pelo filósofo, ora inspiração, para a presente reflexão: “Trabalhamos apenas para encher a memória, e deixamos o entendimento e a consciência vazios.” (MONTAIGNE, 2017).

Nessa conjuntura, Montaigne ainda faz uma dura crítica ao exibicionismo intelectual e a sua visceral vaidade, por vezes, arraigado de saberes superficiais e de teorias vazias sem correspondência com a realidade. Por oportuno, cabe destacar o seguinte trecho:

Vede-o voltar da escola, depois de passados quinze ou dezesseis anos, não há nada mais inadequado para colocar a trabalhar, a única coisa que nele reconheceis a mais é queoseu latim e seu grego o tornaram mais tolo e presunçoso do que era ao sair de casa (MONTAIGNE, 2017).

Outrossim, também vale destacar: “Devia trazer a alma plena, ele a traz apenas empolada; e apenas inchou-a, em vez de ampliá-la.” (MONTAIGNE, 2017).Montaigne ainda cita, em tom jocoso, talvez:

Meu dialeto perigordino chama muito espirituosamente de lettre ferits, como se dissésseis lettre-ferus[i], a esses sabichões a quem as letras deram uma martelada, como dizemos. Na verdade, quase sempre eles parecem desprovidos de senso comum. […] eles, por quererem se elevar e se vangloriar com esse saber que paira na superfície de seus cérebros, se atrapalham e se enredam sem cessar.

Ressalte-se que Montaigne, apesar de sua crítica atroz contra o comportamento pedante, deixa claro que é possível buscar o conhecimento e mesmo a erudição, genuinamente, desde que com as motivações nobres. Sendo isso possível, quando a própria natureza do sujeito o molda, não o deixando ser influenciado pelas noções distorcidas. Dá o exemplo de um homem erudito, Adrian Turnèbe, que segundo ele, foi “o maior homem que existiu em mil anos, no entanto nada tinha de pedantesco além do uso da toga e algum comportamento externo que podia não parecer civilizado aos cortesões, que são coisas sem importância.” (MONTAIGNE, 2017).

Montaigne estende o seu raciocínio para alcançar as Cortes de Justiça de sua época, refletindo acerca da importância de estar presente o discernimento e o bom senso no âmbito das jurisdições onde ocorrem as decisões judiciais, não sendo suficiente o conhecimento técnico. Confira-se:

De que serve a ciência se a compreensão não estiver presente? Quisesse Deus que para o bem de nossa justiça essas cortes estivessem tão bem providas em entendimento e consciência quanto estão em ciência. (MONTAIGNE, 2017)

Prosseguindo, as suas reflexões e críticas às práticas reprováveis existentes no universo do saber, não param por aí. Montaigne discorre vários exemplos da vida real para pincelar e ilustrar os seus apontamentos, não há como citar todos aqui, devido ao tamanho e ao espaço exíguo disponível para o presente texto, mas vale mencionar ainda, a sua crítica dirigida àqueles que buscam o conhecimento com a única finalidade de enriquecimento.

Diz que os estudos não visam outro objetivo senão o lucro, poucos são os que a natureza fez nascer para ofícios mais nobres, para além dos objetivos lucrativos, assim como raros são os que escolhem o seu ofício por vocação. Como consequência, mais conhecimento desprovido de aplicação prática e benéfica à evolução espiritual do indivíduo que o obtém. Conhece, mas não o vive. Sabe, mas não vive melhor. Tem nas mãos um conhecimento que escorre entre os dedos, sem jamais penetrar na pele.

Cabe fazer a seguinte citação, retirada do ensaio filosófico, ora em análise: “Um tem a visão clara, mas não a tem reta; e consequentemente vê o bem, mas não o segue; e vê a ciência, mas dela não faz uso.” (MONTAIGNE, 2017).

Em suas reflexões, Montaigne não deixa de fazer menção às boas práticas pedagógicas, segundo o seu entendimento, vivenciadas na sua época. Por exemplo, cita a boa educação dada às crianças pelos persas, já que eles ensinavam a virtude às crianças, do mesmo modo como outras nações ensinam as letras. Faz menção também a outros povos e outras práticas que julga serem boas. Focando na prioridade que deve ser dada ao desenvolvimento das virtudes e na preparação prática para o enfrentamento da realidade.

Vê-se que, basicamente, ao criticar a educação que visa tão-somente o acúmulo de conhecimentos, esvaziada do intento de se obter efetivamente um saber capaz de beneficiar o indivíduo no campo ético e moral, refletindo de maneira inevitável nos aspectos práticos de sua vida, e ainda, a busca pelo saber com objetivo precípuo do lucro, sem que haja uma autêntica vocação para o ofício escolhido, bem como a vaidade e o exibicionismo intelectual, muitas vezes, sem bases sólidas, mas fundados em saberes superficiais, uma vez que é muito comum, ao se verificar mais a fundo esses comportamentos pedantes, perceber que o “exibido”, de fato, não compreende bem o que fala, nem os outros, tampouco a si mesmo, Michel de Montaigne através de suas reflexões, demonstra repudiar, arduamente, tais motivações distorcidas na busca pelo saber, considerando-as ilegítimas, uma vez que são incapazes de promoverem transformações efetivas no entendimento e na consciência humanas, pois nada produzem além de um saber inócuo, inaplicável à vida.

Por fim, é possível notar uma manifesta razoabilidade na compreensão de que a educação em geral deve ter como objeto principal de sua dedicação e foco, a formação de indivíduos aptos ao julgamento lúcido de suas vivências, ao discernimento moral e ao desenvolvimento de sua própria sabedoria, capaz de orientá-lo em seus dilemas e decisões a serem tomadas na vida prática. Percebe-se, nitidamente, quão atual se revela a reflexão apresentada por Montaigne, no seu ensaio filosófico, ora objeto deste texto, apesar da imensa distância que nos separa de seu tempo.

Aliás, sempre será pertinente reavivar não apenas no meio acadêmico, mas na vida comum e cotidiana de todos, acerca da importância de avaliarmos as nossas motivações diante do conhecimento que buscamos, lembrando que o saber será realmente válido e eficaz em nossas vidas, quando formos capazes de absorvê-lo, impregnando-o em nossos espíritos, de modo a sermos atingidos e elevados a um novo patamar, edificando-nos como seres humanos, e por consequência, passarmos a contribuir utilizando os nossos aprendizados de alguma maneira, – cada um há de ter a sua -, para também elevar o mundo. Alguém disse com ternura e sabedoria: “Uma alma que se eleva, eleva o mundo.” Não sei quem foi, ouvi há bastante tempo, mas ficou gravado em mim e contribuiu para edificar-me.


[i] Como é explicado em nota do tradutor (MONTAIGNE, 2017), essa passagem diz respeito a um jogo de palavras em torno das expressões “ferido pelas letras” (martelado pelas letras) e “ferido de amor pelas letras” (apaixonado pelas letras).

*Todas as citações do texto foram retiradas do livro digital: MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: Que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios. Porto Alegre, RS: L&PM Editores, eBook Kindle, 2017.