JESSÉ SOUZA

O tratamento ao ‘morador do interior’ e a regra do ‘volta depois’

O péssimo atendimento ao público oferecido em certas repartições pune principalmente quem mora no interior (Foto: Divulgação)

Em quase todos os locais públicos onde há atendimento à população existe um cartaz destacando o Artigo 331 do Código Penal, o qual diz que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela pode resultar em detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. De fato, existem casos em que o servidor é desacatado ou mesmo agredido, a exemplo de recorrentes episódios em hospitais públicos.

Vale lembrar que desacatar, conforme a lei, é humilhar, desrespeitar e desprestigiar. Não é apenas o ato de agredir verbalmente ou fisicamente. No entanto, tem o outro lado da moeda, que é o péssimo atendimento ao público oferecido em certas repartições. Em vários locais, as pessoas mais humildes são maltratadas e espezinhadas com a humilhação e o desrespeito.   

Como não moro mais em Boa Vista, o meu tratamento nos órgãos públicos passou a ser de “morador do interior”. Minha aparência física só contribui ainda mais. Estou desde novembro do ano passado em uma verdadeira maratona na fila de atendimento da burocracia para entregar documentos nas duas esferas pública, a federal e, mais recentemente, a estadual. E haja humilhação e desrespeito!

A situação só melhora quando alguém descobre que eu sou o “cara que escreve na Folha”. Ou quando encontro colegas de infância ou da adolescência que vão ao meu auxílio. Mas na fila dos “moradores do interior” não há paciência, empatia ou compaixão. É um atendimento frio, que vagueia entre desprezo e às vezes até o deboche quando a pessoa quer tirar dúvidas ou pedir mais informações.

O pior acontece quando algum servidor passa informação errada, e o morador do interior é mandado embora para voltar em outra data, sem que ninguém tente ajudar ou remediar a situação.  Quem mora no interior ou em comunidades indígenas chega pagando Van, ônibus ou gasolina para abastecer seu veículo. Também paga pousada ou casa de apoio. Ou fica de favor na casa de familiares ou amigos. Fora os gastos com alimentação e  locomoção.

Esta semana, mais uma vez fui mandado embora por um erro de data de uma funcionária. Ninguém queria ouvir minhas perguntas sobre o que poderia ser feito para remediar a situação de ter que ir embora  para voltar na próxima semana ou no próximo mês. Cara fechada, respostas ríspidas e desprezo porque o povo do interior é forçado a baixar a cabeça e ir embora. E vi muito isso acontecer nesses últimos meses.

Desta vez, não. O tratamento indigno não poderia mais prosperar. Sentei ali, desolado, com os nervos já querendo saltar e decidi que iria recorrer aos meus amigos lá em cima da pirâmide, como muitos fazem, para vencer a burocracia e provar para aquelas servidoras públicas que havia uma solução, sim, desde que haja boa vontade e empatia com quem busca resolver seus problemas.

Algumas ligações e trocas de mensagem e… a solução estava encaminhada, evitando mais dor de cabeça e gastos ao ter que retornar em outra data para a Capital. Porém, nem todos têm os amigos e conhecidos a quem recorrer, encontrando mal atendimento e a burocracia em certas repartições públicas, tendo que engolir duro e seco o cartaz com o Artigo 331 na parede.  

Óbvio que isso não ocorre em todos os lugares. Nesses últimos meses de fila e chá de cadeira encontrei pessoas trabalhando felizes, tentando ajudar de alguma forma e buscando remediar situações para evitar que o “morador do interior” não tenha que ir embora para “voltar depois”.

No entanto, isso não é regra e parece que os chefes desses setores não estão muito interessados em resolver o problema. Afinal, o povo do interior sente-se fragilizado e intimidado com a cara fechada e as respostas ríspidas. Se for indígena, então, aí a situação só piora.

*Colunista

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