Conflito de interesses – Cezar C. Soto Riva*
São rotineiros os conflitos de interesses interpessoais e nas organizações onde geralmente os gestores têm dificuldades em tratá-los, perdendo o foco dos seus negócios. Os conflitos devem ser trabalhados e, de preferência, eliminados. A célebre frase “administrar conflitos” já não cabe no cotidiano e equivaleria hoje a administrar uma doença, quando o que se precisa, é curá-la.
Os conflitos são desgastantes e trazem a sensação de derrota quando o que se busca na essência do ser humano é o sentimento de vitória. Foi-se o tempo em que se acirravam os conflitos organizacionais como forma de observar os executivos mais capacitados para enfrentá-los. Conflitos pelo poder sempre resultam em perda de sinergia organizacional e desgaste emocional dos competidores. Empresas seculares estão perdendo mercado e abrindo oportunidades para aquelas que, na vanguarda, sempre aplicaram conceitos modernos de gestão como baixa competição interna, personalidade forte, mas sem autoritarismo, equipes multifuncionais, abertura para inovações, trabalho de equipe, pouca burocracia, dentre outras.
Da desordem surge uma nova ordem. De acordo com a Teoria do Caos, a incompetência do Estado está permitindo o surgimento de novas formas de organizações. Dentre estas transformações, o questionamento do sistema judiciário no tratamento dos conflitos sociais vem merecendo especial atenção. É normal que recorramos ao judiciário em caso de conflitos, mas a burocracia do sistema e o atraso de sua atualização têm travado o desenvolvimento das relações sociais. De ordem cultural, verifica-se nosso acomodamento à tradição do autoritarismo estatal fazendo com que a solução de todos os conflitos dependa do Estado. Muitas inovações batem de frente com um sistema de leis arcaicas, fazendo com que julgamentos e sentenças, pelas suas várias etapas e instâncias, levem anos para serem aplicadas.
A sociedade começa a reagir criando associações e organizações não-governamentais, que passam a atuar em várias frentes, criando uma nova mentalidade onde o cidadão assume funções e responsabilidades que sempre pertenceram ao Estado. A modernização da nossa cultura cria novos valores e práticas, onde se procuram novas formas de resolver os problemas sem interferência do governo. É na medida em que as sociedades se tornam mais complexas, crescem também as possibilidades de conflitos de toda ordem como familiar, empresarial, político, social, etc. Nossa legislação não acompanha esta evolução com a velocidade necessária e, assim, a falta de regulamentação gera novos conflitos.
*Administrador, Espec. em Gestão de [email protected]
XX e XIX – Valdemir Pires*
Neste início do século XXI, o século XIX está em confronto com o século XX, no que diz respeito às possibilidades de sobrevivência da maioria da população, que se sustenta vendendo exclusiva ou predominantemente sua força de trabalho.
No século XIX, o capitalismo chegou à sua plenitude, colocando as empresas no centro do processo produtivo e constituindo um amplo mercado de trabalho, capaz de absorver o imenso contingente de proletários gerado desde o fim das relações feudais e, via aumento inusitado da produtividade, capaz, também, de baratear o acesso às mercadorias, levando Schumpeter a afirmar que o capitalismo não se firmou produzindo roupas finas para as princesas, mas vestidos de algodão para todas as senhoritas.
Só que as senhoritas teriam que ser, antes de comprar os tais vestidos de chita, praticamente escravas, nas fábricas insalubres da indústria de fiação e tecelagem e, depois de casadas, viver às custas dos maridos, cuidando da prole.
Ao longo do século XX, as relações de trabalho foram se alterando para evitar a superexploração dos operários. Ou melhor, foram sendo alteradas com muita luta, capitaneada pelos sindicatos. Primeiro, foi conquistada a redução da jornada de trabalho; depois, melhorias nas condições de trabalho no interior das fábricas; mais tarde, um conjunto de direitos trabalhistas. A partir de um certo momento, os sindicatos passaram a reivindicar aumentos reais de salários com base no aumento da produtividade. Era uma forma de obrigar os donos das fábricas a repartir com eles os ganhos decorrentes dos avanços tecnológicos e da organização taylorista do trabalho.
O século XXI depara-se com um modo de organização do processo produtivo fortemente centrado em novas tecnologias, e transcorre num ambiente muito diferente daquele da revolução industrial (apropriadamente denominado pós-industrial), gerando relações produtivas e de trabalho muito distintas até daquelas vistas nos meados do século anterior. As consequências sobre a vida das pessoas, agora em áreas urbanas espalhadas por todo o mundo, interconectadas, foram muitas e parte delas não são, ainda, bem compreendidas. Nesse “admirável mundo novo”, o execrável mundo velho da superexploração vai, primeiro aos poucos e, ultimamente, muito aceleradamente, se firmando: um reduzidíssimo número de indivíduos e famílias abocanhou para si os resultados da produtividade espetacular atingida pela terceira revolução industrial. Nem a explicação de Schumpeter (de que o capitalista tem ganas de superacumular porque quer garantir as posses da família, no futuro) explica tamanha concentração da riqueza.
Como se defenderão os “trabalhadores” doravante? “Que fazer?” (Lênin). Esta pergunta remete a um debate da esquerda, do início do século XX, a respeito do papel dos sindicatos e dos partidos na luta em defesa dos interesses dos trabalhadores. Debate aparentemente já encoberto pelo limo da história, mas que deve ser o ponto de partida para se pensar o futuro. Afinal, cadê os sindicatos para defender os que vivem do trabalho (independentemente do que se chame, hoje, “trabalho”)? Não é à toa que eles foram os sacos de pancada dos neoliberais dos anos 1980-1990. Estavam perdendo espaço no ambiente “classe média” gerado pelo boom do pós-guerra, alicerçado nos ganhos de produtividade e nas relações políticas de cunho socialdemocratas, e começaram, naquelas décadas de triste lembrança, a ser frontalmente rechaçados por governos retrógrados (neoliberais).
Hoje, no Brasil, os sindicatos e suas centrais estão na lona. As lideranças (salvo raríssimas exceções) vivem da memória de um tempo em que um dos seus veio a ser Presidente da República. E viviam, materialmente, da contribuição anual compulsória, em extinção — como burocratas estatais, propensos à pelegagem. Nunca o sindicalismo foi tão necessário, no país, como agora; e nunca estiveram tão fracos, depois de terem se tornado as fortalezas dos anos 1980.
Pode ser que a forma de mobilizar e organizar os que vivem do trabalho passe por outros caminhos, diferente do sindical, consolidado no século XX, mas uma coisa é certa: sem sindicatos fortes ou instituições que os sucedam contra a superexploração, o século XIX estará de volta, com possibilidades de trazer à tona o XVIII. Os brasileiros que o digam!
Se nada for feito, como ficarão as senhoritas sem seus vestidos de algodão? Diriam as Marias Antonietas de hoje: “Que trajem lycra!”.
*Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara
Cuidado com o que diz – Afonso Rodrigues de Oliveira*
“A palavra não é mais do que a codificação simbólica do que temos em nossa cabeça”.
Entrei no avião, sentei-me na poltrona do corredor. Do meu lado, duas senhoras, uma das quais, muito sonolenta enquanto a outra não parava de ler. Gosto de pessoas que não dormem em viagem. Eu não consigo dormir.
Ainda que passe a noite toda voando ou rodando, passo-a todinha, acordado; lendo ou prestando atenção ao movimento dos que vão ao banheiro. Na ala da esquerda, uma senhora muito jovem, e do seu lado sua filhinha de três anos de idade e muito esperta. A garotinha falava mais do que a boca. Do lado delas, uma senhora que dormia mais do que o sono. Mal se sentou e já estava dormindo. Comecei a ler uma revista de bordo, tentando matar o tempo. Já tínhamos decolado quando observei que a mãe da garotinha estava olhando muito para mim. Concluí que ela estava precisando conversar, já que a filhinha não a deixava dormir. Iniciei uma conversa, pra mim, sem pé nem cabeça. Mas valeu a pena. Conversamos bastante e fiquei sabendo que elas estavam vindo de Lisboa.
A garotinha chamava-se Beatriz. Era lindinha e muito ativa. E durante todo o voo de São Paulo à Manaus, ela não parou, um instante se quer, e falava com todos os passageiros que passavam para o banheiro. Ela mesma foi, levada pela mãe, pelo menos umas quatro vezes ao banheiro. Houve um momento em que ela veio até mim, disse seu nome, perguntou o meu e falou:
– Minha mãe tá grávida. Vai ter um bebê.
Parabenizei-a, pela chegada do irmãozinho, e ela dirigiu-se à senhora do meu lado. Perguntou o nome da senhora e começaram a conversar. Aproveitei e perguntei para a mamãe grávida, quando ela iria ter o bebê; e ela me disse que seria no final de janeiro do ano seguinte. Admirei-me porque sua gravidez era quase imperceptível, embora eu já estranhasse sua inquietação na poltrona. A garotinha continuava na conversa com a senhora enquanto a outra senhora do lado continuava dormindo. De repente a garota vivou-se pra mim, tocou no meu braço e falou, apontando pra a mãe dela:
– Eu durmo com minha mãe. E você?
Aí ela apontou para as duas senhoras do meu lado e completou a pergunta:
– Dorme com essa ou com essa?
A mãe dela quase pulou da poltrona e gritou:
– Minina… Que que você tá falando? Quer arrumar encrenca?
Ela falou e riu. Todos rimos muito. Afinal de contas era uma criança que, como tal, não segue as regras filosóficas. E por isso tem o direito de dizer o que pensa mesmo sem pensar. Toda regra tem exceção. Se não fosse assim não seria regra. Mas se você não é criança, cuidado com o que fala. Pense nisso.