Adeus, Marlboro
Walber Aguiar*
A alma, não sei, acho que partiu para o céu dos cachorrinhos
Fazia frio quando fomos apresentados. Ele veio com seu irmão, a quem batizamos com o nome de Babu, o cão selvagem da África. Babu era preto como a noite e esperto como as borboletas. Qual será o nome do outro, questionamos. Caio disse que se chamaria Leão, por ter o pêlo ruivo e ser forte como o animal das savanas africanas. Devidamente batizado, Leão tornou-se travesso e inquieto como os cachorros da sua idade. Acho que era mestiço de vira-latas com fila e recebia todos os cuidados possíveis.
Um dia amanhecemos em polvorosa e extremamente assustados. Leão havia sumido. Ainda era um cachorro adolescente quando o caboco pegou o cachorro e trocou por droga. Deixou o cão na mão dos traficantes. Pressionado, ele nos levou até onde o cachorro estava preso, guardado pelos traficantes. A confusão se estabelecera. O cachorro só seria entregue se pagássemos uma quantia por ele. Major estava exaltado e Buiú tinha sua mão coçando para começar uma briga. Caio, com toda a calma do mundo, deu ao traficante dezessete reais pelo cachorro, que, depois dessa aventura inusitada passou a se chamar Marlboro. Até hoje não sei quem deu esse nome ao bicho; talvez Cesinha,ou mesmo Caio. Só sei que o novo nome pegou e não saiu mais.
Assim, com a morte de Babu, que não queria mais comer e ficava deitado pelos cantos, Marlboro ficou muito triste e sem ânimo pra nada. Sentiu muito a ausência de Babu, o cão selvagem da África, que morrera a uma da tarde, na sombra, na tentativa de aliviar o calor escaldante que a todos tomara de repente. Os dias de tristeza foram passando e o cãozinho crescia a olhos vistos.
A mudança para o bairro senador Hélio Campos foi muito estranha para Marlboro. Agora,adolescente, espichado pelo tempo, acostumou-se ao enorme quintal que o cercava. Por pouco tempo ele resistiria ao muro alto e imponente diante de sua fragilidade e falta de costume de encarar travessuras mais difíceis. Marlboro passou a fugir num descuido de portão aberto pra encontrar amigos da rua, inclusive as cadelas no cio, que eram irresistivelmente seguidas por vários cachorros maiores e menores que ele. Um dia ele teve a sua primeira experiência sexual. Os meninos da rua tiveram que segurá-lo e ensinar a ele a posição certa do ato conjugal. Aprendeu, depois disso, a pular muros.
Marlboro agora era pai. Um pai meio irresponsável. pois não era afeito ao cuidado dos cachorrinhos, como geralmente os cachorros o são. Os filhotes eram todos muito lindos e se espalhavam na tentativa de mamar e engordar, pra ficarem parecidos com o pai. Finamente, depois do senador Hélio Campos, partimos para o famoso bairro do Mecejana, onde o cão vermelho nunca se acostumou com a casa de dois pisos. Queria voar por sobre o muro pra satisfazer a si e à cachorra Pretinha, que estava no cio. Passou a morar com ela no quintal da vizinha e conseguiu a proeza de ser pai duas vezes mais.
Depois, foi levado para morar no Santa Luzia, onde não se adaptou. Quando a tristeza o abateu, passou a não querer comer o que lhe era dado. Voltou para casa, com seus amigos de quintal. Adoeceu mortalmente, reagiu aos primeiros cuidados, mas, na ausência de um veterinário, acabou partindo de madrugada. Bem cedinho ele se foi. Caio chorou, Ana chorou, todo mundo que o amava chorou um tantão de lágrimas. O corpo, não vi, mas a alma, essa foi para o céu dos cachorrinhos. Adeus Marlboro, você vai fazer muita falta; mas vai continuar vivendo na lembrança e nos cachorrinhos que deixou espalhados por aí…
*Advogado, poeta, historiador, professor de filosofia e membro da Academia Roraimense de Letras
E-mail: [email protected]
Telefone: 99144-9150
O reencontro
Afonso Rodrigues de Oliveira*
“Um dia, nesta praia deserta, de onde contemplo os meus ocasos e somo por somar o tempo inútil, ela surgirá diante dos meus olhos (a mesma de sempre), pousará suas mãos em minhas mãos, fitará longamente o meu rosto, para conhecer as marcas da angústia, e dirá:
– Eis-me aqui novamente.” (Alcides Werk)
Ainda era muito cedo, numa manhã friinha. Levantei-me e fui até à área de trás. Encantei-me quando a vi caminhando em minha direção, num passo lento, tranquilo. Não resisti à tentação e emocionei-me. Ela chegou, acariciou minhas mãos, meu corpo, e continuou sua marcha em direção às montanhas do Iguape. Passei para a área da frente do prédio, e a acompanhei com meu olhar alegre. Ela já começava a lançar o imenso lençol cinza que já cobria os montes. A marcha aparentemente lenta se expandia e cobria toda a região montanhosa.
Voltei para a cama e fiquei refletindo sobre os longos anos que vivi sem vê-la. E como ela me fez bem naqueles anos em que eu ainda não tinha experiência para sentir a felicidade que ela embutia em minha alma. Época em que ela chegava sempre pela madrugada, empurrando uma neblinazinha friinha. A inexperiência não me permitia entender que a neblina não era mais do que um gesto de cumprimento. Aí entendi por que São Paulo era conhecido como a Terra da Garoa. Há muitos anos eu não cumprimentava a chegada da garoa, na terra onde a vi tantas vezes e nem lhe dava a devida atenção.
Desde que cheguei aqui, à Ilha Comprida, tenho vivido manhãs encantadoras cobertas pela garoa que tanto amei. Mas nunca tinha dado tanta atenção à sua presença, quanto dei apreciando sua chegada, ontem pela manhã. Aí fiquei na cama refletindo sobre os dias maravilhosos que vivi na minha juventude, sendo abraçado pela garoa que sempre fora o símbolo paulistano, numa época em que dávamos tanta importância à natureza. Não sei quanto tempo fiquei ali, na cama, pensando, revivendo e lembrando momentos felizes de um tempo feliz.
Saí da cama e ela já tinha ido embora. Mas deixara um cenário encantador, do qual eu já não me lembrava mais. O lençol estendido sobre os montes do iguape tinha rolado para os pés das serras, formando um rolo incomensurável de cinzas branquinhas e lindas de se ver. Foi uma das manhãs mais agradáveis e saudáveis que já vivi aqui na Ilha Comprida, neste ano e meio de convivência. Passei o dia feliz com meu encontro com a Garoa que me leva de volta a bons tempos passados.
Procure viver cada minuto do seu dia, hoje, como se estivesse guardando-o para lembranças de amanhã. A felicidade está dentro de você. Não a desperdice. Ela é toda sua. Pense nisso.
*Articulista
99121-1460