O contrato de Ulisses: mito e cotidiano
João Paulo M. de Araujo*
Muitos de vocês devem estar familiarizados com Ulisses, o remanescente herói da guerra de Troia e personagem central na Odisseia de Homero. Sua personalidade sempre foi sinônimo de astúcia (do grego: Μήτις). A “astúcia da razão”, como bem colocou Adorno e Horkheimer em sua obra Dialética do Esclarecimento. Ulisses não foi agraciado por nenhum deus como, por exemplo, Aquiles, seu parceiro de longas batalhas. Era apenas um mero mortal que, a princípio, estaria sujeito a toda sorte de eventos num mundo completamente hostil onde os deuses brincavam com o destino dos humanos. Portanto, se quisesse sobreviver, Ulisses precisava usar sua astúcia para não ser mais um peão no tabuleiro dos deuses e outros seres mitológicos que habitavam o longínquo mundo antigo.
Na Odisseia, empenhado em vontade e esforço para retornar à sua pátria, a ilha de Ítaca, o nosso herói se vê envolto em muitos problemas e dilemas. A duras penas o seu regresso à terra natal demorou dez anos. No poema, existe uma famosa passagem (Canto 12 da Odisseia) em que Ulisses e seus tripulantes estavam navegando pela ilha das sereias. As sereias eram seres mitológicos cujo belo e divino canto atraía os marinheiros para o esquecimento (de seus objetivos) e para a morte iminente, despedaçando seus navios nas rochas que formavam a baía. Nenhum mortal era capaz de resistir aos seus encantos.
Possuindo plena consciência e convicção de suas limitações como humano, Ulisses conseguia prever que seu destino não poderia ser diferente. Foi então que teve a seguinte ideia: ordenou que seus marinheiros lhe amarrassem no mastro do navio e os advertiu que não importasse o que ele dissesse, não deveriam atender às ordens do seu imediato. Sabendo também que seus companheiros eram mortais comuns, que por sua vez, estariam sujeitos ao mesmo destino, lhes ordenou que eles tapassem seus ouvidos com cera. Dessa forma, seus homens estariam duplamente protegidos, não poderiam ouvir o canto das serias e tampouco as demandas irracionais do seu comandante, que em questão de tempo, estaria implorando para que eles lhe desamarrassem e conduzissem a nau em direção à tragédia. Ao elaborar essa estratégia, nosso herói e seus tripulantes puderam passar incólumes pela ilha das sereias.
Numa primeira análise, apesar de aparentar ser uma decisão racional, o modo como Ulisses traçou sua estratégia deixa um rastro de irracionalidade. Ora, por que Ulisses também não colocou cera em seus ouvidos, não precisando assim ser amarrado ao mastro do navio? Não seria precipitado da parte dele se submeter, ainda que imobilizado, ao canto das sereias? Ulisses sabia dos perigos, mas ainda assim queria ouvir o divino, belo e extasiante canto que tanto ouvira falar, para assim gozar de uma das mais ricas experiências estéticas que naquele mundo fantástico, um viajante poderia viver.
Essa breve descrição do episódio das sereias mostra como Ulisses usou a sua astúcia para continuar firme em sua jornada de volta para casa. Todavia, muito além disso, o mito em questão revela alguns aspectos da nossa cognição. O ponto central é: como nós seres humanos conseguimos negociar nossa perspectiva racional do presente com nossos estados mentais do futuro? Em outras palavras, estamos falando de um metaconhecimento, ou seja, a capacidade que temos de antecipar situações, avaliando em que condições, sob certas circunstâncias, somos capazes de tomar boas decisões. No mito, o Ulisses do presente tinha consciência que o Ulisses do futuro quando estivesse passando pela ilha das sereias seria uma presa fácil, por isso, enquanto ainda podia tomar decisões racionais, se antecipou e montou uma estratégia para não sofrer consequências com decisões tomadas no futuro. Ele sabia que sob a influência do canto das sereias sua racionalidade estaria comprometida, quando não, completamente arruinada.
Nós humanos, em nosso cotidiano, muitas vezes agimos de maneira semelhante a Ulisses. Na maioria dos casos temos consciência de nossas limitações quando submetidos a certas situações em que somos testados. As vezes nossa vontade pode falhar, e cedemos aos nossos desejos e instintos mais imediatos. Os gregos tinham uma palavra para isso: acrasia (ἀκρασία). Trata-se de uma fraqueza da vontade, de uma falta de ordenação para agir da maneira moralmente adequada. É quando não queremos incorrer nesse e em outros tipos de comportamento que nosso metaconhecimento entra em ação. Nosso ‘eu’ do presente começa a negociar com o nosso ‘eu’ do futuro. Dito de outra forma, nossas decisões do presente nos predem a um contrato com o futuro. A esse tipo de atitude os filósofos deram o nome de “contrato” ou “pacto” de Ulisses. Veremos alguns exemplos que evidenciam esse tipo de contrato.
Vamos supor uma pessoa que gosta de consumir bebidas alcoólicas todo final de semana. Até aí nenhum problema. Mas essa pessoa tem péssimos hábitos quando está sob efeito do álcool. E o pior, no dia seguinte sempre é acometido por uma ressaca moral. Na tentativa de evitar certos constrangimentos, ele pede para alguns de seus amigos que observem seu comportamento quando alcoolizado e assim, refreiem suas ações caso passe dos limites. Essa estratégia possui um apelo pragmático no seguinte sentido: se alguém antecipadamente tem plena consciência que não pode depender de sua razão para tomar livremente suas decisões, então o seguro seria se ancorar em outras pessoas que podem fazer um uso pleno e coerente da razão. Em outras palavras, delegamos o poder da decisão sobre nós para outras pessoas.
Poderíamos imaginar alguém que estaria fazendo uma dieta rigorosa, sacrificando tudo que ela mais gosta de comer para emagrecer. Digamos que essa pessoa está numa confraternização da empresa e tudo que ela mais gosta de comer está na mesa à sua frente: feijoada, panelada, paçoca, bolo de chocolate crocante com doce de leite, etc. Um lado dela, mais impulsivo deseja muito comer tudo aquilo, afinal de contas, durante boa parte de sua vida sempre comeu essas coisas e foi muito feliz. Entretanto, seu outro lado (uma nova versão de si mesma) tenta desesperadamente fazê-la desistir dessa ideia que tem tudo para dar errado e acabar com a dieta. Com o passar de um pouco mais de uma hora, ao ver todos os seus conhecidos comerem tudo aquilo, ela resolve ceder, mas com uma condição – não poderá comer em demasia, e no dia seguinte prometerá a si mesma que irá dobrar as horas de atividade na academia, de tal modo que o descontrole de hoje seja compensado positivamente na sua batalha para perder peso.
Um terceiro exemplo podemos trazer do âmbito médico ou clínico. Um paciente profundamente deprimido muitas vezes pensa que o suicídio é a alternativa mais viável para à sua condição. O papel do médico e de sua rede de apoio é justamente ficar atento a esses sinais e impedir que isso aconteça. A pressuposição base para esse tipo de intervenção se assemelha aos casos anteriores. Eles julgam que o paciente não está fazendo um uso adequado de suas faculdades mentais justam
ente porque sua saúde mental não está boa. Com os viciados em drogas que eram internados compulsoriamente o mesmo mecanismo era aplicado. Existem também os polêmicos casos de eutanásia. Em países onde a eutanásia é permitida pessoas optam por esse tipo de procedimento, mas isso de acordo com uma série de critérios de avaliação. Um indivíduo que se encontra com alguma doença degenerativa grave sem nenhuma perspectiva de cura pode racionalmente justificar a prática da eutanásia. Percebam que nesse caso em particular, o sujeito em questão ainda pode usar plenamente suas faculdades mentais, sua escolha por esse tipo de procedimento ocorre num contexto de livre tomada de decisão, ele sabe que num futuro não tão distante irá perder completamente sua autonomia e sofrer ainda mais com o agravamento da doença.
O contrato de Ulisses pode ser desdobrado numa miríade de casos que atravessam o nosso cotidiano. Seja qual for sua versão, o fato é que nós realizamos contratos de Ulisses o tempo todo durante nossa vida. Tomar a racionalidade dos outros emprestada temporariamente é um procedimento constante e muitas vezes útil em nosso dia a dia. Alguém pode tanto decidir por nós quanto o contrário. Quem nunca decidiu por um amigo acerca de algo onde ele não conseguia se decidir? Essa noção de que ao menos duas partes de nós são conflitantes sobre o que é mais preferível, encerra um problema acerca da unidade de pessoa humana. Somos um e o mesmo ‘eu’ ao longo da vida ou somos muitos, ilusoriamente acreditando que somos um só? Como bem expressou o poeta Walt Whitman “Eu me contradigo? Tudo bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões”.
*João Paulo M. de Araujo é professor de filosofia da UERR
É preciso refundar o país para dar dignidade aos brasileiros
**Samuel Hanan
Viver é melhor que sonhar, cantava Elis Regina, a grande intérprete da MPB. Há verdades na bela composição de Belchior, porém é possível sonhar com uma vida melhor, o que o povo brasileiro merece.
Qual o habitante deste país que não gostaria de ter saúde pública mais digna, com a expansão das unidades do SUS, melhor remuneração dos médicos e demais profissionais da área, menos filas, atendimento humanizado?
Quem, entre os 213 milhões de brasileiros não ficaria feliz com educação de qualidade, professores com remuneração justa, unidades escolares modernas e confortáveis, sem falta de vagas nas creches, nas pré-escolas e no ensino fundamental, e acesso amplo ao ensino público superior?
É possível imaginar algum descontente se o déficit habitacional de 6 milhões de casas fosse zerado em poucos anos, com a construção de moradias dignas, construídas em locais adequados, servidas por transporte público, redes de água e esgoto, rede wi-fi e energia fotovoltaica (que representaria economia de 10% do valor do salário-mínimo), e subsidiadas em 90% de seu custo?
Qual cidadão não comemoraria o aumento significativo na segurança pública a garantir-lhe tranquilidade quanto ao seu patrimônio e à sua vida e de sua família, por meio de maior controle das fronteiras, da malha fluvial, dos portos e aeroportos (homologados e clandestinos), portas de entrada de armas, munições e drogas?
Quem daqueles que gastam metade de sua jornada de trabalho no transporte coletivo lotado, saindo de casa de madrugada e voltando somente no meio da noite, mal conseguindo ver os filhos acordados, não ficaria feliz com transporte público mais veloz e confortável?
Quais pessoas não gostariam que a cidade onde vivem fosse dotada de 100% de rede de água, coleta e tratamento de esgoto, iluminação pública, coleta de lixo, conservação permanente e equipamentos de esportes e lazer?
Transformar a realidade atual é uma utopia? Faltam recursos para implementação desses benefícios, como costumam alegar os governantes para justificar sua inação? A resposta, nos dois casos, é não. Para expandir em 50% a rede de saúde e aumentar a remuneração dos profissionais da área em 30%, seriam necessários de R$ 60 a R$ 70 bilhões por ano.
Transformar a educação e valorizar os professores custaria de R$ 50 a R$ 60 bilhões anualmente. Construir 600 mil unidades habitacionais por ano exigiria recursos anuais de R$ 90 a R$ 100 bilhões. Com investimento de mais R$ 30 a R$ 50 bilhões por ano, seria possível reforçar a segurança pública em nível jamais visto. Outros R$ 20 a R$ 25 bilhões seriam suficientes para dotar as cidades brasileiras da infraestrutura urbana necessária para garantir vida digna à população. A mesma quantia alocada ao transporte público restauraria a dignidade dos que dependem dele para se locomover.
A alocação desses recursos plurianuais somaria, então, cerca de R$ 270 bilhões, ou R$ 330 bilhões se pensarmos em investimentos mais generosos. Nominalmente gigante, essa soma representa apenas de 3,40% a 4,10% do Produto Interno Bruto (PIB) anual do Brasil. Se o País conseguir reduzir pela metade a corrupção que consome de 1,30% a 2,35% do PIB anual, alcançará a economia de 0,70% a 1,17% do PIB todo ano. O gigantismo da máquina pública consome hoje cerca de 13,4% a 13,7% do PIB do país, valor este que supera em muito os 9,60% da média desse tipo de despesa dos 37 países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma simples redução de apenas 50% deste excesso de 3,80% a 4,00% representaria uma economia de 1,90% a 2,00% do PIB.
É factível, ainda, a drástica redução dos gastos tributários, em grande parte ilegítimos, sem observância de prazos e regressividade e que não visam a redução das desigualdades regionais e sociais, ao contrário do que manda a Constituição. Tais gastos correspondem hoje a 4,00% do PIB e sua redução para 1,50% representaria economia anual adicional de 2,50% do PIB. A soma das reduções propostas é suficiente para alcançar o patamar entre 5,10% a 5,65% do PIB economizados, muito superior aos investimentos propostos acima.
Isso prova que o país tem recursos suficientes para a transformação que o Brasil reclama. Fica claro que tais investimentos, embora necessários, não são feitos pela simples razão de que o povo deixou de ser prioridade para a maioria de nossos governantes.
A situação nacional é tamanha gravidade que somente a refundação do país será capaz de transformá-lo após tantas décadas perdidas. Sem isso, o Brasil jamais será novamente o país das oportunidades, nunca reencontrará o caminho do desenvolvimento e seremos brasileiros de classe única somente nos discursos, desmentidos pela doída realidade.
A guinada radical pode ser viabilizada se houver trabalho alicerçado na harmonia dos três poderes da República, com efetiva e indispensável participação do Legislativo, aliado a um plano de metas, tudo lastreado na ética, na moralidade e na transparência, com foco na dignidade dos brasileiros, cada dia mais sofridos e desesperançosos.
Para devolver a esperança e a confiança à nação, é preciso também reduzir a sensação de impunidade e reduzir privilégios. Esse caminho passa pela drástica redução do foro por prerrogativa de função – limitando-o aos chefes dos Três Poderes e excetuando-se os crimes comuns -, pelo restabelecimento da prisão após condenação em segunda instância e pela mudança para tornar imprescritíveis os crimes relacionados à corrupção, além do aprimoramento legislativo sobre sinais exteriores de riqueza.
É necessário, ainda, reduzir o número de partidos políticos e os custos das eleições, englobando-se, nesse caso, os fundos partidário e eleitoral, hoje bilionários. Acabar com a reeleição – que somente põe a máquina a serviço de um novo mandato do governante – também é fundamental, aumentando-se o tempo de mandato. E, ainda, o Brasil precisa reavaliar a legislação sobre indicações e aprovações de membros não concursados dos tribunais superiores.
As eleições legislativas de outubro serão importante oportunidade para o povo dar sua colaboração em direção a essa mudança, sinalizando que a Casa do Povo precisa, efetivamente, defender os interesses do povo e cumprir adequadamente seu papel constitucional.
Viver é melhor que sonhar. Entretanto, é preciso agir para transformar o país e concretizar o sonho de viver uma vida digna num país que pode ser muito melhor do que é.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor do livro “Brasil, país à deriva”.
Olhos e mentes abertos
Afonso Rodrigues de Oliveira
“A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. (Nelson Mandela)
Não basta você viver de olhos abertos para os acontecimentos. Mais importante é manter a mente aberta para eles. Com os olhos você vê, com amente você percebe. E o elemento mais importante para manter sua mente aberta, é a educação. Mas ela só é realmente educação quando temos consciência de que “A educação é como a plaina: aperfeiçoa a obra, mas não melhora a madeira”. Peneira que nos ajuda a prestar atenção à educação que damos. Porque só damos o que temos.
Confesso que estou preocupado com o movimento político, na preparação para a escolha dos novos administradores políticos. E o que acelerou minha preocupação, nos últimos dias, foi a campanha acelerada que andam fazendo para o voto dos jovens de dezesseis anos de idade. Uma campanha que seria elogiável se não estivéssemos no redemoinho político atual. E minha preocupação não é com os jovens, mas com o despreparo na educação política que estão lhes dando.
Só quem viveu, de mente aberta, o movimento político no Brasil, antes da revolução de 1964 sabe o que me preocupa. Porque vivi intensamente aquele período, décadas antes do movimento. Não li nem ouvi nos papos de quintal. Eu assisti, ao vivo, a fala do Marechal Juarez Távora, sobre sua preocupação com o desenrolar da política, na época. E olha que a coisa, hoje, não está diferente daquela.
Meu alerta vai para os jovens que estão se preparando para votar. Cuidado, filhos. Mantenha sua mente aberta. Não se deixe levar pela piroga furada dos espertalhões. Seja experto. Sei que a tarefa não é fácil. Que a educação que você recebeu, nos seus estudos, não está, nem um pouco, preparada para o avanço da evolução que o Brasil está necessitando. E se o Brasil necessita é porque necessitamos como cidadãos que ainda não somos, por falta de preparação na política. Tire seu título, vote, mas esteja atento à reponsabilidade que seu título vai exigir de você. O Brasil está numa corda-bamba, e nós, brasileiros, somos os equilibristas. Por isso, vamos nos equilibrar mentalmente.
Vamos nos educar para que, um dia, possamos ser realmente cidadãos. Porque, infelizmente ainda não somos. E não vejo nenhum especialista no assunto, falar sobre o assunto. E isso porque não há interesse, dentro dos sonhos dos imitadores dos anteriores à revolução de 64. Cuidado com os insultos. Há um velho ditado que diz: “Os sábios falam, os inteligentes falam, e os tolos discutem”. Nada de blá-blá-blás. Já se foi o tempo em que os políticos eram escolhidos pelo volume do falatório. Pense nisso.
99121-1460