E por que não?
Afonso Rodrigues de Oliveira
“Se é assim, faça o que eu digo e não faça o que eu faço”.
Lembra-se de que já falei, aqui, do padre Suassuna? Era um cara legal. Eu ainda era criança e levei muito cascudo, na cabeça, por conta dele. Minha mãe me levava sempre à missa. Mesmo criança, eu sabia muito das histórias do padre Suassuna. Sabia que ele bebia todo o vinho da paróquia. Mas o maior cascudo que recebi de minha mãe foi naquela quarta-feira de cinzas. Todo mundo preparado para receber a cruzinha de cinza na testa, quando o padre chegou ao altar, atrasado pra dedéu. Depois dos preparativos, ele virou-se para os fiéis, fez um sinal de chega, com a mão direita e falou sério:
– Com pandeiro ou sem pandeiro, hoje eu não dou cinzas. Todo mundo para casa.
Foi aí que disparei uma risada, e me calei tonto com um cocorote no meio da cabeça. Minha mãe estava séria e com cara de revoltada. O pior é que desabafou na minha cabeça. Só porque eu ri. Tem sentido? Corria um comentário de que quando alguém comentava, com o padre, sobre seu comportamento, ele falava: “Faça o que eu digo e não faça o que eu faço”. Muito legal.
Faz algum tempo, eu costumava parar na casa de um grande amigo, aqui em Boa Vista, para um papo descontraído, pela manhã. Os papeiros falavam muito sobre meus pontos de vista, no que comento aqui, todos os dias. Uns concordavam outros apenas respeitavam, mas tudo e todos numa boa. Era divertido pra dedéu. Até que um dia, a esposa do meu amigo, grande e querida amiga minha, perguntou:
– Escuta… você fala sempre para a gente fazer isso e aquilo. E por que é que você não faz?
Fiz uma força hercúlea para não rir, para não parecer descaso. Mas a verdade é que não aguentei e ri. Mas, porque me lembrei do Suassuna. E não pude deixar de perguntar pra minha amiga:
– E por que você não faz só porque eu não faço?
Ela entendeu e riu. Nem sempre entendemos os porquês dos acontecimentos. A maioria das pessoas não consegue o que querem porque não acreditam que podem conseguir, se realmente quiserem. Preferem seguir exemplos que não servem como exemplo se não forem bem interpretados. E tais pessoas nem sempre têm condições plenas para uma análise coerente. Nem sempre não fazemos porque não somos capazes. É sempre uma questão de escolha, mesmo que esta não nos pareça coerente nem aconselhável. Nunca faça, só porque alguém fez, nem deixe de fazer porque alguém não fez. Faça sempre o que lhe for agradável e lhe traga bem-estar, alegria, e muita felicidade. No que dizemos quando dizemos para você fazer, só queremos que você seja feliz no que faz. Faça sempre o melhor que puder fazer no que faz. Pense nisso.
9121-1460
Sobre as representações primárias e secundárias da percepção em Fred Dretske
João Paulo M Araujo
Professor no curso de filosofia da UERR
Nossos estados perceptuais podem se manifestar sob inúmeros aspectos. Afinal, enquanto sujeitos da percepção, estamos conectados com toda uma série de possíveis episódios e eventos do mundo natural responsáveis por preencher boa parte de nossa consciência perceptiva. Isso implica dizer que em situações perceptuais o que vemos, cheiramos, sentimos ou degustamos são eventos, efeitos causais desencadeados por uma cadeia de objetos. Em filosofia da percepção, apesar das críticas, uma teoria que sempre serviu de base para auxiliar os filósofos nessa direção foi a teoria causal da percepção. Em termos mais sucintos, a teoria causal da percepção basicamente afirma que se uma pessoa P vê um objeto O, então, O causa em P uma experiência visual. Trata-se de uma teoria bastante intuitiva que serve como base para qualquer tipo de conhecimento de senso comum. O filósofo norte americano Fred Dretske em suas considerações epistêmicas sobre percepção, toma como ponto de partida a teoria causal da percepção. Todavia, isso não significa que Dretske endossa a clássica teoria causal da percepção como um tipo de descrição que pode oferecer uma resposta razoável ao que percebemos e como percebemos. De acordo com Dretske (1981, p. 157), falta a teoria causal da percepção “uma apreciação da maneira como as relações informacionais operam para determinar o que percebemos”. Em outras palavras, na caracterização de Dretske, há uma diferença entre uma relação causal e uma relação informacional na percepção.
As considerações de Dretske sobre percepção estão ancoradas numa perspectiva bem mais sofisticada de explicação, pois, Dretske recorre às ciências cognitivas para atingir seus objetivos. Poderíamos afirmar que a explicação perceptual de Dretske é uma forma de teoria representacional da percepção. Para ilustrar esse ponto farei uma adaptação do próprio exemplo dado por Dretske em seu texto. Vamos supor uma situação na qual alguém em sua residência escuta o som da campainha tocar. O som produzido pela campainha é o objeto do estado sensorial/perceptual. Entretanto, de acordo com Dretske, este som carrega informações extras, tal como a pressuposição (antecedente) causal de que alguém está na porta da casa pressionando o botão para produzir o som. Aqui vale reforçar que muito embora o som da campainha carregue a informação de que alguém esteja pressionando o botão lá fora, nós não ouvimos o botão sendo pressionado, o que ouvimos é o som produzido por esta ação. Portanto, para este caso, o som é o objeto da percepção e não o botão sendo pressionado. Entretanto, cabe aqui a seguinte pergunta: o que é que faz com que o som da campainha seja o objeto da percepção ao invés do botão que está sendo pressionado, por que este último não pode ser objeto sensorial?
Para ajudar nessa distinção e delimitação do objeto perceptual Dretske introduz a noção de representação primária e secundária. De acordo co
m Dretske (1981, p. 160), nossa experiência auditiva consegue representar o toque da campainha e o botão sendo pressionado, todavia, apenas o toque da campainha é tomado como uma representação primária. A razão disso, segundo Dretske (1981, p. 160) é “porque a informação que a experiência carrega sobre o botão sendo pressionado depende do vínculo informativo entre o botão e a campainha, enquanto sua representação do toque da campainha não depende dessa relação”. Trata-se de uma relação causal representativa entre o botão sendo pressionado e o som produzido. Em termos perceptivos mais imediatos, um tem primazia sobre o outro na consciência do sujeito que percebe.
Consequentemente, a relação de dependência que vincula o botão sendo pressionado ao som produzido pela campainha faz com o que o botão se torne uma representação secundária. Diante disso é fácil concluir que apenas representações primárias são nesse caso, consideradas objetos da percepção. De acordo com Dretske (1981), uma experiência perceptual não precisa carregar informações sobre todas as propriedades possíveis do objeto perceptivo em questão. Nesse sentido, “a razão pela qual ouvimos a campainha, e não o botão, é porque, embora nossa experiência auditiva carregue informações sobre as propriedades da campainha (que está tocando) e do botão (que está pressionado), o toque (da campainha) é representado de forma primária, enquanto que a depressão (do botão) não” (DRETSKE, 1981, p. 162). Percebam que a teoria causal da percepção permanece como pano de fundo das explicações de Dretske, embora de maneira muito mais acurada.
A descrição filosófica da percepção em Dretske está ancorada em uma série de estudos empíricos. Nesse sentido, o seu naturalismo filosófico o impede de sustentar qualquer postura filosófica da percepção que tenha como base e pano de fundo a intencionalidade da percepção na primazia da explicação perceptual. Esse ponto de vista representacional/informacional de Dretske seria uma explicação alternativa da percepção que não precisasse recorrer a intencionalidade da percepção como é o caso da teoria perceptual de John R. Searle (1983; 2015). Na verdade, para Dretske, não precisamos da intencionalidade para explicar a percepção. A razão disso, é que percepção é um processo que independe de nossas crenças e sofisticações linguístico conceituais. Dretske está convicto de que para uma explicação da percepção, ele não precisa da intencionalidade, em outras palavras, a percepção não é intencional. Acredito ser essa postura um tanto extrema, uma vez que a intencionalidade ainda é um elemento importante em alguns tipos de descrições perceptuais. Todavia, é possível pensar em casos perceptuais em que de fato não precisamos da intencionalidade.
A principal razão para a convicção de Dretske repousa em considerações construídas em trabalhos anteriores. Trata-se de sua obra Seeing and Knowing (1969). Nesse livro, o pano de fundo de sua explicação é que possuímos uma habilidade visual primitiva que é comum a muitos outros seres sencientes como gatos, cachorros, chipanzés, etc. Esse tipo de capacidade é relativamente livre das influências educacionais, experiências anteriores, sofisticações linguísticas e conceituais. Desta forma, o ponto de Dretske em sua crítica sobre a intencionalidade da percepção é fortalecer a ideia de que ter uma experiência visual de um cupuaçu é completamente diferente das capacidades cognitivas, conceituais ou representacionais de ver um cupuaçu como um cupuaçu, ou seja, não é uma relação epistêmica ou cognitiva, portanto, não tem nada a ver com reconhecimento ou identificação. Em outro texto (The Intentionality of Perception) Dretske (2003, p. 160) afirma que “senciência, a capacidade de ver station wagons amarelas, é uma coisa; sapiência, a capacidade de representá-los como station wagons amarelas, ou meramente como veículos de outro tipo, é outra coisa.”
Para demarcar os objetos da percepção Dretske não recorre a intencionalidade. Como vimos, sua distinção entre representações primárias e secundárias daria conta de estabelecer tais relações de primazia perceptual na escala de objetos imediatos da percepção. Em termos práticos poderia ser o caso de alguém ver ou ouvir um cupuaçu caindo da árvore sem saber o que é exatamente um cupuaçu. Essa mesma pessoa poderia até ser atingida por um cupuaçu em queda livre. Isso significa dizer que não precisamos saber o que é um cupuaçu para ser atingido por um; em outras palavras, não precisamos saber o que vemos ou ouvimos para ver ou ouvir.