Paisagem cultural do lavrado – Sebastião Pereira do Nascimento*
De acordo com o geógrafo Carl Troll, uma paisagem cultural pode ser vista a partir de um sistema funcional, sendo este o resultado de ações humanas (geofatores) que levam a ressignificar ou reconfigurar uma paisagem. Sendo que os fatores que constroem uma paisagem cultural se imbricam a partir de processos relacionais que refletem em transformações temporais e conservam testemunhos de tempos passados, baseado numa dependência recíproca, configurando o que Aziz Ab’Saber chama de uma relação que envolve elementos naturais e culturais, onde o povo residente atribui significados materializados na paisagem ou até mesmo instigam a remodelação dela.
Portanto, a paisagem cultural é uma construção através de processos de relações, onde os seres humanos transformam uma paisagem a partir de suas práticas cotidianas, tornando um marco identitário de uma determinada população. Isso promove uma relação cenótica e cria a ideia de que a paisagem cultural é sempre uma herança de um povo. No caso do lavrado, um sistema de áreas abertas situado no nordeste de Roraima, sua paisagem cultural é composta por alguns elementos simbólicos e funcionais como:
– Macuxi. Povo indígena do tronco linguístico Karib, principal habitante do lavrado. Também é como se designa simbolicamente qualquer indivíduo (indígena ou não indígena) que nasce, ou por adesão, que vive em Roraima, independente da origem étnica. Portanto, “macuxi” é uma representação simbólica que passou ser identitária do povo que incide sobre a paisagem do lavrado.
– Habitação. As moradias que se destacam na paisagem do lavrado (tanto nas malocas indígenas como nas sedes das antigas fazendas) são casas tradicionalmente cobertas com palhas de buritizeiros (Mauritia flexuosa) e paredes feitas com barro batido (abobe ou taipa). No geral, as casas são construídas no topo dos tesos, o que torna difícil dissociar os tesos do lavrado sem a presença dessas habitações, as quais se configuram como elementos funcionais na paisagem do lavrado.
– Fogo. O fogo é um evento comumente observado na paisagem do lavrado, sendo mais ocorrente durante a estação seca, geralmente para renovação da “pastagem” para o gado e também como “limpeza” das áreas de caça e pesca. O fogo atua diretamente no processo de manutenção das áreas abertas do lavrado, e cabe ao homem “lavradeiro”, através do seu hábito cotidiano, introduzir o fogo na vegetação que para ele determina uma dinâmica de relações que envolvem elementos naturais e o seu modo de vida.
Ainda relacionado ao fogo, as roças tradicionais, comumente situadas nas ilhas de mata, também exercem forte ação na consolidação das áreas abertas de lavrado. Isso porque o povo que habita a região constrói suas pequenas roças e utiliza o fogo como mecanismo de limpeza, onde com ajuda da vegetação seca e do vento, o fogo se espalha e desencadeia a supressão da vegetação primária, substituindo a “mata” por áreas francamente abertas, numa constante remodelação da paisagem do lavrado.
– Cavalo. O cavalo lavradeiro, possivelmente de origem da raça andaluz, chegou ao vale do Rio Branco no início do século XVIII trazido pelos portugueses. Mais tarde, com a chegada do gado bovino, os cavalos passaram a ser utilizados no trato desses animais. Segundo Ramayana Braga, a vida livre dos cavalos no lavrado foi em função de que os fazendeiros não tinham o interesse de “manejar” adequadamente os cavalos como faziam com o gado; apenas “amansavam” os animais que utilizavam no dia a dia das fazendas. Com o passar do tempo, os cavalos foram aumentando ao ponto de formar bandos (ou lotes), vivendo totalmente em liberdade, muitos deles sem ter nunca contato direto com o homem, sendo hoje um elemento intrínseco da paisagem do lavrado.
– Gado. O primeiro rebanho bovino chegado aos campos do Rio Branco, foi a partir de 1789 trazido pela coroa portuguesa como estratégia de ocupação territorial. Dessa forma, se há alguma coisa que o povo do lavrado se ocupou em mais de dois séculos de convivência, foi lidar com a criação extensiva do gado. Tendo nesse processo a inserção compulsória dos povos indígenas, inicialmente como mão de obra escrava e mais recentemente como criadores. Contudo, a criação extensiva do gado tem também singular função na manutenção das áreas abertas locais, principalmente pela ação antrópica do fogo, o que sugere ser um elemento funcional e muito peculiar na paisagem do lavrado.
Desse modo, a paisagem cultural do lavrado é construída a partir de um processo histórico promanado pelos povos nativos e pelos povos que aqui chegaram, os quais construíram (ou constroem) suas vidas pautadas nas feições do lavrado, a partir de uma relação harmônica ajustada com o tempo, a qual celebra as principais características desse grupo social. Ainda que em constantes transformações, tais características, aliadas aos fatores geográfico e ecológico da região, confere ao lavrado uma identidade própria, diferenciada de qualquer outro sistema de paisagens abertas.
*Filó[email protected]
Eu era eu – Afonso Rodrigues de Oliveira*
“Devemos ser o que não somos, mas sem deixar de ser o que somos.” (Victor Hugo)
No final da década de cinquenta e início da de sessenta, São Paulo era outra cidade, claro. Saindo da Praça do Patriarca, desce-se uma escada que leva ao Vale do Anhangabaú. Ali ficava uma galeria de arte, onde assisti a várias exposições. E foi numa delas que li, num quadrinho, na parede da galeria, essa frase do Victor Hugo. Que, aliás, o Rodrigo Baraúna é apaixonado por ela. Foi uma época em que conheci grandes pensamentos que enriqueceram minha infância, adolescência e juventude. Uma fase em que frequentei muito os teatros. E foi ainda na minha infância que li na sobrecapa do meu caderno, ainda no curso primário, essa frase; e sempre a uso como exemplo de como devemos aceitar as pessoas, independentemente de sua instrução: “A educação é como a plaina: aperfeiçoa a obra, mas não melhora a madeira”.
Décadas depois e depois de caminhar por estradas cansativas tanto quanto instrutivas, deparei-me com essa frase simples contundente. Foi na ida a Brasília, para o evento da Teia-2008: “Somos todos iguais nas diferenças”. E se analisarmos, os pensamentos são os mesmos. É uma mistura de sabedorias fundidas no cadinho da racionalidade. Simples pra dedéu. Ser simples nos faz entender a grandeza e a riqueza na simplicidade. Por que complicar quando os valores estão na simplicidade?
Não vamos naufragar nas marés mansas de águas turvas dos acontecimentos atuais. Eles só são atuais porque nós não o somos e não consideramos os acontecimentos passados. Quando os analisamos vemos que os de hoje são apenas repetições dos de ontem. Você se lembra do vestido-saco? Diverti-me à beça com as garotas vestidas com eles, no final da década de cinquenta. E o que hoje parecia ridículo está sendo repetido e apresentado como novidades nos grandes programas de televisão, como “podrinho”. Está na moda como se fosse novidade.
Quando sabemos levar a vida, ela demora mais a nos levar. E levar a vida não é querer ser o dono da cocada preta. É apenas entender e aceitar a vida como ela é. E por isso não somos todos iguais quando não respeitamos e aceitamos as diferenças. Já conheci operário indicado pelo presidente da empresa, para cargo bem remunerado, apenas pelo seu comportamento profissional. E já tive um auxiliar, na grande empresa onde trabalhávamos, que acabou preso e assassinado na prisão, como o quarto maior traficante da Rocinha. E enquanto funcionário na empresa onde trabalhávamos, ele era um excelente garoto e um funcionário exemplar. Vamos viver deixando que os outros vivam suas vidas. Pense nisso.