Religião e ciência: algumas perspectivas históricas
Luiz Cambraia Gouvêa da Silva*
É comum conceber o pensamento religioso e a prática científica como distintas esferas da atuação humana: a primeira resguardaria a alma e os costumes, a segunda concentraria seus esforços na compreensão dos fenômenos da natureza. A separação entre ciência e religião, em uma concepção ampla, é tida, muitas vezes, como inata e essencial, ou seja, como se fossem campos incomunicáveis. Mas a pesquisa histórica, ou mais precisamente o recorte metodológico feito pela história das ciências, tem defendido que a ligação entre essas duas instituições é mais basilar do que se poderia imaginar. Na realidade, é quase consenso na historiografia contemporânea que o nascimento da ciência moderna está relacionado, em alguma medida, a fenômenos religiosos.
Edward Grant em seus estudos a respeito da ciência moderna detecta uma dupla função da Igreja Católica na consolidação do pensamento científico na Baixa Idade Média. A primeira foi o impulso e a relativa autonomia que a instituição religiosa concedeu às primeiras universidades medievais. A segunda foi o incentivo à formação dos clérigos em filosofia natural, além, claro, do curso de teologia. Esses teólogos-filósofos naturais se formavam “Mestres em Artes” e foram fundamentais na produção intelectual medieval.
Não nos esqueçamos do fundamental papel do islamismo na promoção das ciências e da filosofia. O historiador paquistanês Syed Nomanul Haq defende a hipótese de que a ciência islâmica, que teve seu auge entre 800 e 1300 depois do nascimento de Cristo, foi fundamental tanto para a preservação das obras clássicas da filosofia grega, através de traduções para o árabe, quanto na produção de profícuos comentários tecidos pelos pensadores islâmicos.
Embora haja várias vertentes com interpretações variáveis, a historiografia das ciências contemporâneas tem cada vez mais defendido, que o fenômeno da “ciência” deve ser entendido como processo, ou seja, como uma forma de representação do mundo que se manifestou, de formas distintas, em quase todas as sociedades humanas. Este processo deve ser analisado em paralelo com outros, principalmente com o do pensamento religioso. Embora tenham existido, e ainda existam, atritos entre cientistas e religiosos, o importante é compreender esses dois campos de práticas humanas, não como antítese uma da outra, mas de uma forma dialógica e complementar. Como podemos observar, um nasce atrelado ao outro. Enfim, o progresso das relações humanas depende do potencial de diálogo entre essas diversas instituições e cabe aos cientistas e religiosos não aderir as posturas sectárias e fundamentalistas.
*Mestrando da Faculdade de Ciências e Letras
Impunidade para quem precisa
Tom Zé Albuquerque*
Qual seria a principal causa do aumento da criminalidade e da reincidência nas práticas dos crimes no Brasil? Este questionamento não raro vem à tona, sem uma resposta à altura do tamanho do problema. O que não se questiona, porém, é que a impunidade irriga vorazmente as estatísticas da bandidagem brasileira.
No último fevereiro, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, expediu uma liminar permitindo que o famoso goleiro Bruno, do popular Flamengo, condenado por tramar a morte, o esquartejamento e a ocultação do cadáver de sua namorada, voltasse ao convívio normal em nosso meio, após passar apenas 16 meses na Penitenciária. Um ser humano que pratica um ato dessa natureza representa, a meu ver, risco extremo para a sociedade. O magistrado, como se nota, não levou em conta as características violentas do goleiro.
A forma misericordiosa de agir do Ministro tem um legado considerável. É também dele a decisão que suspendeu a prisão preventiva do ex-banqueiro Salvatore Cacciola, pavimentando assim sua fuga para a Itália, depois de quase uma década foragido por gestão fraudulenta, desvio de dinheiro público, repasse de informações privilegiadas e sigilosas. O mesmo magistrado também foi, pasmem, o único Ministro a votar a favor de um habeas corpus a Suzane Von Richthofen, a garota que ganhou notoriedade por assassinar mais que cruelmente os pais à cata de herança. Marco Aurélio também ordenou as solturas de vinte contraventores presos pela Polícia Federal na Operação Hurricane e, mais impressionante de tudo, a liminar fora peticionada pela defesa de apenas um deles, mas o Ministro estendeu logo pra todo mundo.
O magistrado também concedeu a liberdade de um dos mais perigosos milicianos de Jacarepaguá, do Rio de Janeiro, ora acusado de formação de quadrilha, homicídios, extorsão e planejamento da morte do deputado Marcelo Freixo. No primeiro caso, após a CF/88, em que o STF pugnou pela prisão de um parlamentar condenado, deputado federal Natan Donadon, o Ministro foi o único do colendo corpo a votar contra a prisão. Fico imaginando como deve ser desmotivador para um agente de polícia, escrivão, perito, delegado e todo o lastro de profissionais que arduamente constroem toda uma envergadura processual para conseguir levar um bandido à cadeia, e por um entendimento unilateral, longe da realidade cruel,todo um trabalho concatenado é, num súbito, arremessadoao léu.
O delinquente que infringe e não é punido tem forte propensão a voltar a praticar o crime, pelo sombrio argumento que “o crime compensa”. O que me preocupa não é somente o goleiro Bruno estar à solta (porquanto nós sabemos do fato somente devido sua fama), mas as centenas, milhares de condenados que moeram corpos por aí, que torturaram e praticaram seus mais sombrios e cruéis desejos com as próprias mãos e a “justiça” os devolveu à sociedade, lépidos e fogosos.
Por outro lado, está presa nas Filipinas uma brasileira acusada de tráfico de drogas que deverá ser condenada por 40 anos, sem direito a complacências. Em 2015, dois brasileiros foram condenados e executados na Indonésia por tráfico de drogas. Em ambos os casos os governos entenderam, corretamente, que o tráfico é algo hediondo, que destrói a família, a sociedade, e arrasa uma nação. Interessante é que para as duas situações, os três brasileiros solicitaram na justiça o direito de serem julgados no Brasil. Por que será, hein? A impunidade no Brasil fere todas as pessoas de bem e beneficia do usuário de drogas aos parlamentares (sobretudo pela impunidade parlamentar), mas principalmente pela irresponsabilidade destes ao permitirem que alimentemos o sentimento do qual as penas pelas leis absurdamente protetivas ao bandido tem velozmente arruinado nosso país. É lamentável constatar que todo arcabouço jurídico brasileiro é montado para favorecer e até premiar a marginalidade.
A impunidade no Brasil é trabalhada ainda na adolescência, pelo estímulo à criminalidade, a partir de pichações, tráficos, roubos, torturas, estupros, sequestros, assassinatos, uso irrestrito de armas e que não são, absurdamente, punidos, por serem “menores”, tão somente para serem condenados, mas nunca para a prática de crimes. A Tribo de Jah retratou esse caos numa música, intitulada de “Impunidade”: “A justiça só é cega quando não quer ver; quando a lei se nega a se fazer valer, para uns implacável, para outros maleável… ou até negociável; ter leis em questão é o mesmo que não; leis sem efeito,que abrem exceção abrem precedentes à dúbia aplicação”.
*Administrador
Divórcio entre imprensa e sociedade
Pedro Cardoso da Costa*
Virou mais um clichê afirmar que determinada cobertura ou imagem mostrada não seria papel da imprensa. E aqui vale a menção para todos os veículos de comunicação de massa, seja revista, jornal, sites, televisão ou rádio.
Caso a pergunta fosse devolvida a quem formula essa negativa, não se saberia afirmar qual seria o “papel da imprensa”. Com ou sem papel definido, a imprensa vai desempenhando sua atividade como qualquer outra, com pequenos e grandes erros e acertos.
Há décadas qualquer nomeação ou posse de um ministro, por mais insignificante que seja, é destaque na abertura de telejornais na televisão e manchete em capa de jornais e de revistas. Já sobre educação, é preciso procurar com lupa para encontrar uma capa ou uma abertura televisiva.
Faz-se também uma cobertura sensacionalista em ondas periódicas, sempre em defesa das autoridades governamentais. Há várias décadas, por exemplo, a onda é sobre a necessidade de reformas constitucionais. O país não encontra nunca uma forma de continuidade, pois só se vive e fala das “reformas necessárias”. Elas são justificadas como solução de crises econômicas causadas por gastos supérfluos, desperdícios e corrupção em qualquer obra ou projetos sociais. Nove constituições federais e centenas de emendas não corresponderem à única bicentenária dos Estados Unidos.
No ano de 2014, São Paulo descobriu que água potável era uma fonte esgotável. Toda a cobertura da mídia se voltou contra o cidadão. Que desperdiçava água lavando calçadas, não colocava redutor nas torneiras, os grandes condomínios e indústrias não reutilizavam água e tantos outros, sempre a culpar o cidadão. Esqueceram-se totalmente de que muitas campanhas incentivavam o consumo, exatamente para encher as burras dos fornecedores. Graças a São Pedro, tudo já foi esquecido.
E agora são as reformas da Previdência, Trabalhista e Tributária. As outras são apenas para camuflar a rasteira que querem dar nos cidadãos. Os argumentos todos já conhecem sempre superficiais, e para prejudicar o trabalhador comum.
Profissionais renomados de televisão chegam a ficar com uma expressão enlevada, consciente de que estão devorando a coerência enquanto defendem a “necessidade” dessas reformas como uma verdade absoluta para 204 milhões de brasileiros, quando eles mesmos não acreditam numa palavra do que estão dizendo. Por essas e outras, um jornalista, hoje, não consegue fazer uma matéria onde estiverem presentes dez pessoas. Se não houver mudança na conduta no jornalismo brasileiro, esse distanciamento pode se tornar abissal.
*Bacharel em Direito