JESSÉ SOUZA

Quando a redação do Enem esbarra nas cenas cotidianas do racismo estrutural

No mês que trata sobre a Consciência Negra, assunto precisa estar em debate diante dos últimos acontecimentos (Foto: Divulgação)

Ainda ecoa o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano -“Desafios para a valorização da herança africana no Brasil” -, cuja prova foi aplicada dias após a polêmica que envolveu o jogador Vini Jr., que não recebeu a Bola de Ouro muito provavelmente por causa de sua postura, como negro jogando na Europa, de encarar o racismo dentro de campo e nas arquibancadas dos estádios.

Agora, neste exato momento, as redes sociais tornaram-se palco de um caso envolvendo a modelo e influenciadora Ana Paula Minerato, apresentadora do programa Estação Band FM e musa da Escola de Samba Gaviões da Fiel, de São Paulo. Acusada de falas racistas, com a ampla repercussão no país, a modelo foi desligada da Band FM e também do posto da Gaviões da Fiel. É o mínimo!

Como novembro é o mês dedicado a discutir sobre a Consciência Negra, o assunto precisa estar em pauta. Então, é aí que o tema da redação do Enem acaba se cruzando com a realidade do racismo impregnado na sociedade brasileira, na qual a valorização da herança africana se esbarra cotidianamente no racismo estrutural, disfarçado de brincadeiras ou de falas e comportamento racistas.

Embora o Brasil tenha sido construído sobre o lombo de indígenas e negros escravizados, essa importante e decisiva contribuição sempre foi ignorada ou apagada dos livros de História em um passado bem recente, como se restassem de contribuição apenas a culinária, as danças e o folclore. Até hoje, nas escolas, o Dia dos Povos Indígenas é lembrado com professoras e alunos se fantasiando de indígenas, ignorando todo um legado em busca de direitos e respeito aos povos originários.

O que a influenciadora paulista expos em sua fala racista é a mais pura expressão de como os negros são tratados no dia a dia, em que o cabelo é somente parte do ataque histórico à negritude, seja em forma de piada, de brincadeira ou mesmo de deboche e em discussões. Logo, não há como falar em valorizar a herança africana sem antes a sociedade encarar o racismo como crime e punir exemplarmente quem o comete sob qualquer argumento.

O Brasil já avançou muito. As consequências que a influenciadora está encarando é um sinal de que falas racistas não podem mais ser toleradas. Um importante avanço é o fato de o racismo recreativo ser considerado crime no Brasil. Por aqui, torcedor que achar que é apenas recreação tratar jogador em campo com atos e palavras racistas sofrerá as implicações da lei, o que não ocorre na maioria dos países europeus.

No entanto, apesar dos visíveis e importantes avanços, pessoas que aparentemente deveriam dar exemplo e que deveriam ser conscientes das implicações de suas falas e posicionamentos revelam a necessidade de avançar ainda mais no combate ao racismo, a exemplo da intolerância com religiões de raízes africanas, que é muito comum no país, incluindo em Roraima, onde casos continuam ocorrendo.

Há uma grande trilha de desafios a ser encarada para que haja realmente uma consciência negra no país, que demorou a abolir a escravatura e que segue tratando os negros como uma “raça inferior” e indignos de respeito e direitos, da mesma forma que o Brasil colônia tratava negros e indígenas 500 anos atrás. É necessário sempre reagir para que realmente o país alcance a democracia racial de verdade – e não como uma fachada para ocultar a realidade.

O fato do maior e mais importante exame brasileiro, o Enem, adotar como tema de redação a questão da herança africana já é uma importante contribuição para combater o racismo estrutural, colocando uma grande leva de jovens estudantes em busca de seu futuro a incorporar uma profunda reflexão sobre o assunto em um momento importante em que o extremismo reflete severamente na consciência dos brasileiros.  

*Colunista

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