JESSÉ SOUZA

Um passeio nos últimos anos até chegar às manchetes nacionais sobre o narcogarimpo

Ainda em 1990 surgia o termo “narcogarimpo” em um relatório do Serviço Nacional de Informação (SNI) (Foto: Divulgação)

Embora a grande imprensa tenha retomado o termo “narcogarimpo”, nos últimos dias, para levantar a real possibilidade de as atividades de tráfico de drogas e exploração ilegal de ouro estarem migrando da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, para garimpos no Estado do Pará, o termo não é uma novidade.  Existe um relatório de 1990, do Serviço Nacional de Informação (SNI), admitindo “a possibilidade de o ouro ali produzido [na Terra Yanomami] servir para lavar rendimentos do narcotráfico, dadas as facilidades para cruzar a fronteira”. No entanto, foi só em 2021 que a Polícia Federal usou o termo “narcogarimpo” na Operação Narcos Gold, desencadeada no Pará.

Já naquela época havia fortes indícios de um grupo liderado por faccionados que utilizava garimpos como base para pousos e decolagens a fim de transportar drogas, com esses garimpos servindo como fachada para a lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico, inclusive a quadrilha contava com o envolvimento de policiais. Não por coincidência, um ano depois, começaram as ocorrências em Roraima que também apontavam para a existência de milícias com participação de policiais dando apoio ao garimpo ilegal. Inclusive, na semana passada, foi confirmada pela Polícia Civil roraimense uma investigação sobre a suspeita de policiais militares integrarem milícia e grupo de extermínio com atuação no garimpo ilegal.

Mas, até chegar a estes casos da atualidade, não foi algo por acaso ou aleatório. Nos últimos anos, deu-se início, no Brasil, a um processo político para facilitar uso de armas e a tentativa de liberar o garimpo em terras indígenas em várias frentes parlamentares, as quais também atuam para reduzir os direitos indígenas. E tudo isso seguido do enfraquecimento da legislação ambiental. No início de 2022, durante a abertura do ano legislativo na Câmara Federal, foi apresentada uma lista de prioridades do governo com 45 propostas, além da publicação de dois decretos facilitando a garimpagem e incentivando a atuação dos grandes empresários da mineração ou dos investidores do garimpo ilegal.

Um deles foi o   Decreto nº 10.966, que criou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala, e a Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala. Ou seja, o decreto serviu para estimular a mineração artesanal e em pequena escala, ato este usado apenas como estratagema para dar apoio às grandes mineradoras. Esse apoio veio com o Decreto de nº 10.965, que simplificou os critérios para a análise dos processos e outorgas de títulos minerários pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Esse segundo decreto permitiu que todos os pedidos para atividades de garimpos registrados na ANM pudessem ser facilmente concedidos, em 60 dias, acabando com todas as análises necessárias.

Enquanto existia um movimento ativo e forte para incentivar e liberar o garimpo, o governo passou a beneficiar os grandes empresários da mineração ilegal na Amazônia, a partir de quando os critérios para liberar a exploração passou a ser simplificado, abrindo as portas para novas áreas de garimpo surgirem sob aspecto de legalidade. A edição desses dois decretos ocorreu no mesmo momento em que foi publicada a Portaria nº 667, que apresentou a agenda prioritária, a qual incluiu o Projeto de Lei nº 191/2020, que tinha a finalidade de abrir as terras indígenas para a mineração, a exploração de madeira e o agronegócio, usando como argumento a guerra entre Rússia e Ucrânia.

No entanto, bem antes disso, foi resgatado o Projeto de Lei 490/2007, considerado o “pai de todas as maldades”, que não apenas impôs um marco temporal para impedir novas demarcações de terras indígenas, que também permite retirar as terras de povos indígenas que “perderem suas culturas” e até mesmo arrendar as terras indígenas para o agronegócio. O PL das maldades foi um resumo de outros projetos com teor semelhante aos cerca de quase 100 PLs e apensados que tramitavam no Congresso Nacional há vários anos e que visavam restringir os direitos dos povos indígenas, especialmente à demarcação de suas terras, propostas estas que ganharam prioridade absoluta dentro do Congresso até se tornar lei atualmente.

Concomitante a isso, surgiram como prioridade outras propostas prejudicais ao meio ambiente, a exemplo do PL 3729/04, que praticamente propõe o fim do licenciamento ambiental ao criar a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC). Ou seja, os donos de terras poderão fazer o autolicenciamento, que significa o fim da necessidade de algum órgão ambiental analisar os projetos. É o cúmulo dos absurdos, tornando inócuos os órgãos ambientais dos municípios e estados. Surgiu ainda o PL 2001/19, que visa acabar com unidades de conservação no país, ao prever a caducidade dessas unidades que não estejam regularizadas.

Houve ainda o PL 5544/2020, que liberava a caça esportiva de animais no País, proposta esta que casou com a liberação de armas para caçadores, que foi outra prioridade nos últimos anos durante o governo anterior. Essa foi outra frente de atuação dos políticos  que de tudo fizeram para facilitar a liberação de armas. Até o ano de 2022, foram publicados 17 decretos, 19 portarias, três instruções normativas, dois projetos de lei e duas resoluções ampliando o acesso a armas e munições sem controle. Com isso, caçadores esportivos e atiradores desportivos reunidos em clubes tiveram porte de arma automático.

E aqui está a consequência: o conjunto de tudo isso se refletiu em uma corrida ao garimpo ilegal em terras indígenas, com destaque à Terra Indígena Yanomami, em Roraima, onde armas de fogos ilegais encontram um território livre, cuja atividade criminosa se uniu ao narcotráfrico, fazendo emergir o narcogarimpo, que atualmente está nas manchetes dos principais jornais do país. O crime organizado nunca teve tanto incentivo para se estabelecer na Amazônia quanto nesses últimos anos. É muito apoio político e poder financeiro nas mãos dessas organizações, que devido às ações de combate ao garimpo ilegal atualmente em curso estão procurando migrar para outros lugares menos visados.  

*Colunista

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