JESSÉ SOUZA

Uma obsolescência programada quando se trata de educação indígena

Manifestação realizada em 2015 contra a retirada da Educação Indígena do Plano Estadual de Educação em Roraima (Foto: Divulgação)

O cenário se repete a cada ano letivo nas escolas localizadas em terras indígenas, as quais são as últimas a serem atendidas quando se trata de estrutura do prédio das unidades escolares (a maioria há 30 anos sem manutenção, reforma e ampliação), de transporte escolar, servidores de apoio e professores, inclusive com calendário escolar retardatário. E a cada ano, surgem problemas com a lotação de professores ou mesmo a falta deles, muitas vezes obrigando a não ter aulas de algumas disciplinas.   

Até o ano retrasado, algumas delas seguiam de forma remota desde o fim do tempo da pandemia porque essas escolas não reuniam condições de receber os alunos ao retomarem as aulas presenciais ou porque não havia transporte escolar. No ano passado, 79 escolas só iniciaram o ano letivo em junho, e as aulas só serão encerradas em 20 de março deste ano. Enquanto ano letivo de 2024 foi iniciado em 05 de fevereiro para a maior parte das escolas, essas 79 retardatárias do ano passado começarão as aulas somente no dia 28 de março próximo.

Conforme denúncia feita por gestores, 240 escolas localizadas em comunidades indígenas ainda não dispõem de merendeiras, muito menos de servidores de copa e cozinha. Os estudantes só irão se alimentar porque os professores já sabem do problema e estão saindo em busca de voluntários dentro das comunidades para que essas pessoas preparem a merenda dos estudantes, geralmente pais ou outros familiares de alunos.

Desde o fim da pandemia, quando as escolas ficaram fechadas, 150 unidades de ensino em comunidades indígenas também já não dispunham de servidores de limpeza, trabalho esse que precisa ser feito por voluntários ou pelos próprios alunos e professores em boa parte das escolas. Reclamações sempre existiram, mas os pais, professores e gestores temem represálias, por isso não costumam reclamar abertamente. E as perseguições existem mesmo, pois boa parte dos professores é seletivada.

A questão de estrutura não se trata de um problema novo, específico de uma gestão, mas de uma realidade que vem de décadas. As últimas escolas construídas em comunidades indígenas foram nos governos do já falecido Ottomar Pinto (1991 a 1994) e de Neudo Campos (1995 a 2002). Até hoje, nenhuma nova escola foi construída ou a maioria não recebeu sequer ampliação ou reforma (aliás, nenhuma nova escola estadual fora de terra indígena foi construída nos últimos anos).

A maioria das escolas indígenas ainda segue da mesma forma que há 30 anos, sendo essas unidades obrigadas a improvisar espaço com sala de aula debaixo de árvores ou palhoças construídas pela comunidade; ou dividindo salas com copa para preparar a merenda, postos de enfermagem para atender a comunidade ou cedendo espaço para turmas da educação infantil dos municípios. É um problema que se repete também nos municípios onde há terras indígenas.

É perturbador saber que as autoridades não conseguem lidar com os recorrentes problemas que remontam à criação do Estado, quando a educação indígena foi implantada sob fortes reivindicações de lideranças e professores indígenas, chegando a ser criada uma divisão específica para a educação indígena – inclusive com a Organização dos Professores Indígenas tendo força política para indicar o chefe dessa divisão na Secretaria Estadual de Educação. Hoje as indicações fazem parte do bolo da divisão de cargos com aliados políticos.

Exatamente nesses primórdios de luta das lideranças que as primeiras escolas começaram a ser construídas nas comunidades indígenas, as quais ficaram congeladas no tempo até os dias atuais, cujos recorrentes problemas se renovam a cada início de ano letivo. Os seguidos governos sempre deixaram as comunidades indígenas em último plano quando se trata de política educacional, o que pode ser observado nos Calendários Escolares Indígenas publicados na edição do dia 29 de janeiro passado.

Não custa lembrar, naquele tempo de Ottomar e Neudo – apesar de todas as dificuldades e da forte política anti-indígena devido ao início da luta pela demarcação das terras indígenas -, o Estado de Roraima chegou a ser exemplo para o país quando se tratava de educação indígena. E a realidade de hoje só mostra uma regressão que impõe barreiras para uma educação diferenciada e de qualidade. Os fatos indicam a existência de uma política de obsolescência programada. Não há como pensar diferente em um Estado onde garimpeiros mobilizan políticos e a opinião pública em favor da ilegalidade.

Para quem tem dúvida, basta lembrar que, em 2015, a Secretaria de Educação de Roraima decidiu tirar do Plano Estadual da pasta a modalidade indígena, provocando uma imediata mobilização das populações indígenas. Não fosse a ampla repercussão, teria dado certo o plano do governo da época que era impedir que as comunidades indígenas de Roraima continuassem tendo acesso à educação escolar diferenciada, garantida pela legislação brasileira.

Se ninguém ficar de olho nas decisões ou falta delas, os políticos vão deixar todas as escolas construídas há 30 anos desabarem até não mais haver condições de seguirem com as aulas, justificando novamente a retirada da Educação Indígena do Plano Estadual de Educação, como foi tentado em 2015. Pelo menos é isso o que parece diante das seguidas faltas de prioridades.   

*Colunista

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