Cotidiano

BR-319: a rodovia onde o motorista não tem previsão para acabar a viagem

Via de apoio da BR-174 tem ausência de fiscalização, Trecho do Meio não pavimentado e projeto de recuperação que sofre resistência na esfera ambiental

Quem pretende passar pela BR-319, via de apoio da BR-174 para o restante do país, tem que estar ciente de que a viagem não tem hora prevista para terminar. É porque, dos 885km de extensão da rodovia federal que liga Manaus a Porto Velho, 405 não tem pavimento e são praticamente intrafegáveis há mais de 30 anos.

+ Confira a terceira reportagem da série da FolhaBV sobre a BR-319: Motorista deixa Boa Vista e chega em Porto Velho após seis dias de viagem

O intervalo entre os quilômetros 250 e 605, dentro do Amazonas, forma o famoso Trecho do Meio, onde a poeira reina entre junho e novembro, época de menor volume de chuvas na região. De dezembro a maio, aí que o negócio pega de verdade: quanto mais chove, mais surge lama e buracos, e os igarapés, rios e lagos ao redor da rodovia enchem e quase ninguém consegue passar.

A FolhaBV terminou o trajeto em 36 horas, com uma caminhonete tracionada, pois precisou ajudar veículos atolados pelo caminho. A equipe começou a aventura às 15h de uma terça-feira, na balsa do porto da Ceasa, em Manaus. A travessia pelos rios Negro e Solimões e desembarcar em Careiro da Várzea, é feita de 4h às 20h e custa de R$ 10 a R$ 350. Do outro lado, o trajeto terrestre começa para valer. Pelos 199 primeiros quilômetros de asfalto, há trechos onde a pista cedeu, sinalizados por placas da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Poucos motoristas dirigem por ali. Não há fiscalização, apesar das placas alertarem sobre a proibição de veículos trafegarem com peso acima de 17 toneladas entre dezembro e maio, e de 23 toneladas de junho a novembro. “Final do trecho pavimentado”, avisa a placa em Beruri. É partir daí que o bicho pega.

Enquanto o trabalho do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte) não avança pela rodovia – atualmente recheada de canteiros de obras e materiais a serem utilizados em sua reconstrução -, os carros de passeio, por exemplo, escorregam a todo momento, devido à pista molhada nesta época do ano. Por ali, a placa indica: 60 km, velocidade máxima permitida. Na prática, o motorista só consegue trafegar em até 20km por hora, na maioria do trajeto.

Era 20h quando a equipe atravessa de balsa o rio Igapó-Açu, em Manicoré, onde descansa, para continuar a viagem às 5h do dia seguinte.

O primeiro veículo atolado


Fiat Mobi fica preso na BR-319 (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

Às 6h, sob a neblina que caía no km 285, aparece o primeiro veículo atolado na rodovia: um Fiat Mobi 2018. “Espero que essa estrada melhore logo”, disse o motorista Alex Dalazen, de 35 anos.

Só depois que o veículo é resgatado por um solidário e desconhecido motorista de caminhonete, três carretas conseguem passar pela pista, em direção a Manaus.

Pela frente, as protagonistas são as ruínas do asfalto, inaugurado pelo regime militar em 1976 e que ficou sem manutenção a partir de 1988. Era 8h30, quando o sol aparece sobre o igarapé Roraima e reacende a esperança de uma estrada seca. Mas não. Para além dali, até o trecho mais firme de estrada de terra, fruto de um recente trabalho de recuperação e conservação do DNIT, se desfaz com a passagem dos veículos mais pesados.

No km 359, um ônibus, sem ninguém, aparece atolado e encostado no barranco à direita. No km 363, pouco antes do igarapé Rio Novo, ainda em Manicoré, dois ônibus e um caminhão param no meio da pista, para o café da manhã, em um restaurante de estrada, bloqueando a passagem, devido à ausência de local seguro para estacionar pelas laterais do trecho da rodovia.

Ônibus atola duas vezes


Ônibus é socorrido por máquinas do DNIT, comuns na região (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

Seguindo viagem, outro ônibus atolado, mas no meio da pista. Alguns dos 38 passageiros do veículo descem para tentar desatolá-lo. Mas só os caminhões do DNIT conseguiram tirar o ônibus do local. “Essa é, de longe, a pior estrada que já passei”, disse um dos passageiros.

O ônibus era o segundo da viagem do grupo, que viajava de Manaus a Porto Velho. O primeiro atolou na noite anterior. A viagem deles já passava das 24 horas de duração. Ainda faltava mais de 500 quilômetros para chegar ao destino.

No km 396, o ônibus atolou de novo, com risco de cair no lago à direita. Não à toa, os passageiros descem. “Por mim, eu arriscava sair do atoleiro, sem medo. Mas tenho que priorizar os nossos passageiros”, disse o motorista.

Por pouco, a equipe da FolhaBV não atola no mesmo trecho, que ainda afundou uma outra caminhonete. Um motorista de 34 anos, ao avaliar os últimos quatro anos da BR-319, disse: “Do tempo que eu tou andando aqui, piorou bastante”.

Foi parando ali, que o profissional de terraplenagem, Lucenilton Almeida Viana, de 40 anos, fez uma avaliação geral do estado de seu Fiat 2008. “Quebrou o parachoque, o disco de embreagem, o radiador”, disse. O carro teve que parar num dos canteiros de obras do DNIT até chegar a manutenção.

Poeira, levantou poeira


Poeira no distrito de Realidade, sul do Amazonas (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

A partir do km 412, a poeira se torna, definitivamente, a protagonista. Placas recomendam não parar na pista. Há pela frente pouca sinalização e é difícil saber que cidade é. No distrito de Realidade, a 320km de Porto Velho, motociclistas trafegam sem capacete, tranquilamente. Era 14h50, quando a FolhaBV finalizou o percurso pelo Trecho do Meio. Daí em diante, a estrada é boa e há poucos buracos, até a chegada em Porto Velho, por volta das 17h.

Falta fiscalização de peso e outras infrações


Caminhão caçamba fica atolado no meio da rodovia (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

Como proibir o excesso de peso na rodovia, se não há quem fiscalize? A indagação da FolhaBV é endossada pelo empresário Remídio Monai, do ramo de transportes em Roraima e com atuação em outros três estados.

Ele reclamou da falta de fiscalização do excesso de peso dos veículos pesados, apontado como vilão da conservação das atuais condições da rodovia. “O DNIT coloca a portaria, mas não tem quem fiscalize e infelizmente, por falta de consciência dos caminhoneiros, das empresas de carga, eles colocam as carretas e acabam plantando-as num buraco daquele e fecham a estrada”, relatou.


Posto fiscal da Sefaz em Humaitá (AM), a 205km de Porto Velho (Foto: Lucas Luckezie/FolhaBV)

Sobre o posto fiscal da Secretaria Estadual da Fazenda do Amazonas (Sefaz), no município de Humaitá, na fronteira com Rondônia – onde o expediente só é de dia -, Monai acredita que isso facilita a passagem de veículos com carga acima da permitida, à noite. Procurada, a Sefaz não comentou sobre o horário de funcionamento do posto.

Outras infrações de trânsito, como o consumo de bebidas alcoólicas, inclusive ao volante, pode ficar impune, pois atualmente não se vê a presença de forças de segurança, como a PRF.

Pavimentação pode colocar previsão na viagem, mas projeto sofre resistência

Em 2007, DNIT e Ibama firmaram um termo de ajustamento de conduta, em que prevê que qualquer trabalho realizado no Trecho do Meio tem que ser acompanhado de um estudo de impacto ambiental. O primeiro foi feito em 2009, mas as quatro versões foram recusadas.

Em 2021, o DNIT apresentou ao Ibama um novo relatório de impacto ambiental, em que prevê cerca de R$ 1,4 bilhão para as obras de pavimentação do Trecho do Meio em até 48 meses. Na prática, o asfaltamento pode colocar previsão na viagem, de Manaus a Porto Velho: de 10 a 12 horas.


Mapa da BR-319 (Foto: Reprodução/EIA-RIMA/DNIT)

As etapas das obras incluem: canteiros de obras, terraplenagem, drenagem, pavimentação, sinalização e obras complementares, recuperação ambiental das áreas utilizadas nas obras, finalização e a construção de 71 pontes com passagens de fauna secas, nas margens, para permitir a movimentação segura dos animais por baixo.


Trecho de projeto do DNIT (Foto: Reprodução/EIA-RIMA/DNIT)

Os trabalhos de recuperação são defendidos por André Marsílio, presidente da Associação Amigos e Defensores da BR-319, com 10 mil associados. Líder de 43 grupos de aplicativos de mensagens, onde são compartilhadas informações do dia a dia da rodovia federal, ele exemplifica, na prática, o custo das precárias condições do trajeto. “A gente chegou a estimar o que a estrada ocasiona no bolso do trabalhador, em termos de produtos perecíveis que vem pela BR-319. Por exemplo, o preço da melancia na Manaus Moderna, no inverno, chega a R$ 15. No verão, chega a custar R$ 8”, disse.

O estudo de impacto ambiental foi discutido em nove audiências públicas realizadas entre o fim de setembro e o início de outubro, nos municípios localizados às margens da rodovia, e renderam discussões acaloradas, principalmente em torno da questão ambiental e dos direitos dos povos indígenas que vivem no entorno da BR-319. Os eventos servem para o Ibama avaliar outros pontos não contemplados pelo projeto.

Em audiência de 27 de setembro, em Manaus, o pesquisador do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), Philip Martin Fearnside, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2007, começou a ler um artigo em que afirma que “os impactos da BR-319 vão muito além do que é considerado no EIA [Estudo de Impacto Ambiental], que se concentra na faixa ao longo do próprio traçado da rodovia”.

“Prosseguir com a rodovia BR-319 e estradas associadas teria consequências desastrosas para o Brasil, efetivamente abrindo o que resta da floresta amazônica do país para a migração de atores e processos do arco do desmatamento, inclusive para Roraima”, segundo Fearnside.

Lucas Ferrante de Faria, cientista do Inpa, defendeu na audiência que o estudo “está incompleto e discordante da literatura científica” e que, com base em estudos científicos, disse que a rodovia afeta 18 mil indígenas, que é propícia para a formação de uma organização criminosa de grilagem de terras e que há falta de governança da BR-319, quanto a incapacidade de controlar o desmatamento.

Pavimentação é prioridade para o DNIT

O DNIT reforçou à FolhaBV considerar a reconstrução da BR-319 como prioridade, por ser hoje a única ligação rodoviária das capitais Manaus e Porto Velho com o restante do Brasil. Sobre o Trecho do Meio, disse que “tem se empenhado para obter licença ambiental e trabalhado paralelamente na atualização dos projetos para que as obras de reconstrução e pavimentação sejam iniciadas o mais breve possível.”

“O DNIT acredita na viabilidade de um empreendimento com governança ambiental, respeitando as comunidades e a floresta, ao mesmo tempo em que garante à população do Norte do país o direito de ir e vir. Para isso, estão sendo feitos estudos ambientais extremamente sofisticados”, acrescentou em nota.

A autarquia disse ainda que o custo total de R$ 1,4 bilhão, previsto do estudo de impacto ambiental, “só poderá ser confirmado após a aprovação das devidas licenças ambientais.”

Superintendente promete novos postos da PRF na BR-319


O superintendente da PRF-AM, Diego Patriota (Foto: SSP-AM)

O superintendente da PRF-AM, Diego Patriota, disse à FolhaBV que a corporação planeja fazer remanejamento, ampliação e implantação de novas unidades ao longo da BR-319, para controlar todos os acessos à rodovia federal e coibir infrações e crimes. E que, para isso, conta com o apoio da bancada parlamentar federal do Amazonas no sentido de trazer recursos para a polícia.

Um deles será parte da ampliação da atuação policial rodoviária federal na Zona Franca de Manaus. É naquela área que, pelo porto da Ceasa, as pessoas têm acesso de barco à capital do Amazonas. Segundo Patriota, a região terá o “maior posto” da PRF no Brasil.

O posto fiscal do município de Careiro da Várzea, às margens do rio Solimões, será transferido para Careiro Castanho, 91km depois. “Será um ponto estratégico pra gente”, disse.

Haverá, ainda, um posto da PRF no Trecho do Meio. “Enquanto ele não é construído, a gente segue um cronograma de operações na região”, explicou ele, citando como exemplo a Operação Guardiões do Bioma, que combate crimes ambientais.

Patriota ainda anunciou novas unidades na BR-230, conhecida como Transamazônica, em Apuí e Lábrea, no sul do Amazonas. “Com isso, a gente tem a oportunidade de fechar, controlar todos os acessos rodoviários do estado”, avaliou.

Em Humaitá, a corporação enviará mais 30 agentes para atuação exclusiva no entorno do município fronteiriço a Rondônia. “Os 200 primeiros quilômetros do sul do estado vão ser bem melhor atendidos”.

Diego Patriota avalia que o aumento da presença da PRF na BR-319 pode expandir o acesso à internet para os moradores. Atualmente, motoristas, por exemplo, caso atolem da rodovia, dependem da solidariedade de quem passa por lá para sair do buraco.

Sobre o excesso de peso de veículos, o superintendente disse que a PRF presta apoio na abordagem de veículos e que trabalha, junto ao Ministério Público Federal (PRF) para que empresas de carga reincidentes assinem termos de ajustamento de conduta ou mesmo respondam ações civis públicas pelos danos causados à rodovia.

Ibama e MPF-AM não responderam

Procurados para falar sobre a BR-319, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM) não responderam os questionamentos até a publicação da reportagem.