Cotidiano

Candidatos contam histórias de superação e renúncia

Relatos são de tristeza, decepção, frustração e revolta; psicóloga dá dicas de como enfrentar situação

Durante a manifestação e caminhada dos candidatos que se sentiram lesados com a decisão do cancelamento dos concursos públicos, alguns deles relataram à Folha ontem, 4, histórias de abdicação e investimento nos estudos.

Com a filha pequena no colo, Adriana Veloso, de 30 anos, caminhou do Centro Cívico à sede do Ministério Público, no bairro São Pedro, e depois retornou ao ponto de partida. Ela deixou o emprego, mesmo precisando para ter condições de sustentar as duas filhas, uma delas com deficiência.

“Tive que deixar minha filha deficiente muitas vezes com familiares, pegar dinheiro emprestado para me manter em cursinho a fim de tentar mudar de vida e acontece uma situação dessas. Eles não estão pensando na gente, mas apenas neles. Tive que comprar notebook, pagar mensalidade do cursinho, havia dias em que eu estudava de manhã, à tarde e à noite, além dos fins de semana. Muitas vezes, tive que fazer faxina para conseguir dinheiro para pagar ‘aulão’. Se for colocar no papel, eu gastei mais de R$ 7 mil”, confidenciou.

 Gabriela de Aguiar, de 27 anos, saiu de casa no Estado do Rio de Janeiro depois que soube do concurso e estudou por quase um ano.

“Vim fazer a prova, passei e agora estou morando aqui. Eu moro por conta própria e se eu for somar tudo o que gastei com cursinho, apostila, curso on-line, gasolina para ir ao cursinho, passagem de ônibus quando não tinha o carro, tudo deu mais de R$ 4 mil. Várias noites passei acordada. Por inúmeras vezes eu dormia às 2h da manhã e acordava às 6h para continuar estudando. Deixei minha família toda no Rio de Janeiro. Só eu e meu marido estamos aqui”, contou.

Clauber Robson Fernando, de 30 anos, também largou o emprego de vendedor externo e vendeu seus bens para pagar cursinho.

“Não aceito receber de volta só R$ 180 da inscrição. Eu gastei uns R$ 5 mil, fora minha esposa que gastou mais ou menos o mesmo valor. Foram dois anos estudando para esse concurso e o vice-governador vem simplesmente dizer que está cancelado? Por que não suspende a convocação até que o Estado se normalize? Estou sem chão”, compartilhou.

O candidato Anderson Félix, de 24 anos, não conseguiu abandonar o emprego porque afirmou que tem família, mora de aluguel e tem contas para pagar, mas conseguiu aprovação no concurso da Polícia Militar depois de trabalhar o dia inteiro, chegar em casa à noite e ainda estudar. Ele também revelou que não fez cursinho para concurso porque não tinha condições de pagar e afirma ter recebido com tristeza a notícia do cancelamento.

“A gente fica pensativo a ponto de não ter vontade de fazer mais nada, desistir da vida, porque é complicado investir tanto e acontecer uma coisa dessas”, declarou.

Ildean Guedelha, de 34 anos, mora em Rorainópolis e disse que o concurso foi a última chance de ingressar na Polícia Militar de Roraima.

“Passei dois anos estudando para ser policial, consegui uma pontuação excelente para entrar na primeira turma da quarta região, em Rorainópolis, mas infelizmente jogaram esse balde de água fria em cima da gente. Uma das primeiras coisas que fiz foi me desfazer do som do meu carro, o que eu mais queria na vida. Além disso, abdiquei de muitas coisas, como sair com os amigos. Eu dormia tarde, acordava cedo, tudo isso. É decepcionante, não consigo dormir e penso nisso toda hora”, relatou.

Wellington Lima, 26 anos, relembrou que seu colega de cursinho não assistiu ao parto do próprio filho para não perder aulas.

“Enquanto o filho nascia, ele estudava. Eu estudo desde 2017 e trabalhava em caixa de supermercado. Tive que largar o emprego e abdiquei de tudo para estudar. Com o tempo, acabei vendendo minha moto para custear algumas despesas pessoais e deixei de sair de casa”, comentou.

Estudando desde 2012, Nickson Lima, 28 anos, precisou largar o emprego de monitor de câmeras de shopping para se dedicar integralmente aos estudos.

“Além disso, fiz um investimento. Perdi família, namorada, emprego, investindo no sonho de ser policial. As pessoas não entendem que ser policial é o sonho de servir à sociedade. Não é só salário. Eu gastei uns R$ 4 mil com material, curso on-line. Usei toda a rescisão do meu emprego investindo no cursinho. Fiz planos para o futuro. Estou desde sábado sem dormir direito, com o psicológico abalado”, detalhou.

Aos prantos, José Wilson Vieira Araújo, de 32 anos, disse que tirou uma boa nota, fez cursinho e passou dois anos sem visitar os pais que moram em Rorainópolis.

“Tive que vender meu transporte para bancar os estudos. Comprei material on-line, estava nos cursinhos de domingo a domingo. Todo mundo está aflito com essa notícia. Eu já estava esperando sair a lista no fim de fevereiro. O governo tem que rever essa decisão. Segurança é prioridade”, cobrou.

Bruno Mosena, de 28 anos, trabalhava em um banco privado quando decidiu abrir mão do emprego para estudar.

“Tive briga em casa com a família, inclusive com a esposa por causa dos estudos. Abri mão dos fins de semana, dos amigos para me dedicar durante esse período para conseguir ser aprovado num concurso muito difícil e concorrido. Agora, o governo cancela alegando que não tem orçamento. Meu sentimento é de tristeza, mágoa, perda”, admitiu.

O candidato Charlecion Paiva, de 36 anos, estava na manifestação para reivindicar o direito de fazer a prova do concurso da Polícia Civil, marcada para os dias 16 e 17 deste mês. “O governador já sabia da situação do Estado. Ele agiu de má-fé. Não poderia utilizar de uma ação radical que é cancelar o concurso. Muitos de nós investimos valores muito altos. Eu gastei em torno de R$ 8 mil. Já coloquei no papel. Gastei com professor particular, videoaula, material, cursinho. São nove meses estudando para o concurso da Polícia Civil. Ainda bem que a Justiça decidiu pela manutenção”, respondeu.

Quem estava em meio aos manifestantes foi Eliane Marcondes, de 37 anos, que está na lista de aprovados do concurso da Secretaria Estadual do Trabalho e Bem-Estar Social (Setrabes).

“Meu sentimento é de revolta porque a gente estuda, faz o concurso, espera publicação no Diário Oficial de que vai ser chamado e o governador cancela. Passei um ano estudando em cursinho, pagando, comprei material, fui aprovada porque sou técnica em enfermagem e fiz para agente sociogeriátrico. Eu espero que, principalmente, o Ministério Público faça alguma coisa, antes que a gente tenha que ir até ele, porque é impossível que um concurso que já foi homologado, em que pessoas foram convocadas, seja cancelado. Se torna mais revoltante porque ele mesmo [vice-governador] disse que tem orçamento. Por que cancelou o concurso?”, questionou. (J.B)

Psicóloga instrui candidatos ao analisar impacto psicológico

A Folha procurou a psicóloga Katherine Mabel Galarza Quinto, especialista em terapia cognitivo-comportamental, para fazer uma análise do abalo psicológico dos candidatos dos concursos cancelados pelo governo. Segundo ela, atualmente o cenário político e social no Brasil vem interferindo de forma direta no aspecto emocional da população.

“No caso específico de Roraima, nos últimos dias, o fato dos concursos públicos terem sido cancelados atingiu de forma avassaladora muitas pessoas que investiram tempo, dinheiro e, principalmente, esforço físico e mental na preparação para as provas. Precisamos considerar que pelo número de candidatos e concursos, a situação não afeta apenas o aspecto econômico das pessoas, mas principalmente o emocional, pois tamanho descaso da parte do governo coloca em risco a saúde mental de quem colocou esperanças, expectativas e objetivos nos concursos”, opinou Katherine.

Quanto à saúde mental dos estudantes, a psicóloga esclareceu que devemos considerar que o contexto de cada pessoa é diferente, assim como a sua estrutura psicológica, e que a situação não apenas atingiu um direito básico, mas feriu principalmente os planos de muitas famílias sobreviverem do serviço público.

“Analisando essa situação, precisamos entender e tomar algumas medidas para lidar com esse sentimento de desrespeito e principalmente frustração. Em primeiro lugar, aceitar o momento em que a notícia foi publicada, o abalo emocional que todos sentiram. Sentimentos como a raiva e a tristeza são comuns e não precisam ser escondidos. Entretanto, num segundo momento, é necessário traçar uma série de atitudes que precisam ser tomadas para lidar com a situação já instalada. O primeiro passo é se informar sobre as medidas legais cabíveis e a forma de como proceder para exigir os direitos como cidadão roraimense. Num segundo momento, depois de ter feito tudo que deve ser feito legalmente, começar a buscar estratégias de saída do problema, o foco em alternativas de emprego e a recuperação da motivação que movia num primeiro momento os estudos, ou seja, estabilidade financeira, realização pessoal ou profissional, sobrevivência pessoal e familiar, entre outros”, pontuou Katherine Galarza.

Somente após resgatar tudo aquilo que era tido como motivação, segundo a psicóloga, é que conseguiremos enxergar novamente as próprias necessidades e desenvolver habilidades para encontrar saídas para uma situação emergencial.

“O melhor caminho para retomar objetivos e criar outros meios é sempre lembrar que a luta individual não se desenvolve sozinha, mas que precisa partir do coletivo no sentido de lutar pelos seus direitos, portanto, fazer uma análise profunda de que tipo de pessoas escolhemos para nos representar. Precisamos cuidar da nossa saúde mental para prevenir outros tipos de consequências, como ansiedade, estresse, desgaste emocional. Não é um momento para desistir dos objetivos, pois o esforço dedicado não foi retirado de cada um, ele ainda está presente e pode ser utilizado para outras saídas, por exemplo, concursos em outros Estados. O principal é lembrar que de alguma forma sempre haverá outra saída para qualquer conflito”, instruiu a profissional de psicologia. (J.B)